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Poeshydra

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 15 de ago. de 2020
  • 2 min de leitura

Atualizado: 21 de jun. de 2022

Janeiro a noite

Por André Prada


Janeiro a noite

Os dias inúteis iam sendo rendidos pelas noites vazias de uma forma silenciosa e surpreendente. O tempo, as horas, os minutos com seus insuportáveis segundos, alongavam o tédio e o medo. Aquele vácuo de pessoas nas ruas produzido pela peste, alimentava a sensação de desamparo e impotência.


Houve, em algum momento do passado, nosso remoto, adorável e invejado passado (sim, todos teremos, de alguma forma...inveja do passado), um dia muito parecido com estes de agora, pois o tempo, como diria Borges, não é mais que a sucessão, a incontável cadeia de acontecimentos.


Vinha caminhando de volta para casa após me desvencilhar dos braços quentes e amorosos de Vivi Agra, tenente budista, companheira de rondas diurnas e blitz noturnas em nossos próprios corpos sobre um colchão de chão, regadas a álcool barato e um incontrolável desejo de pecar, quando tive a sensação do vazio, muito semelhante a destes dias de isolamento social. Enquanto descia a rua do comércio semi-deserta em uma tépida e aprazível noite de Janeiro, rabisquei mentalmente:

A cidade é morta

os vivos dormem

as dores se desfazem

as ruas respiram

aliviadas de esperanças

não correspondidas

por fatais desilusões

Latentes os cães arfam

ao lado dos pedintes

cansados de farejar o dia

Latidos lamentosos

ossos cansados de

usar a vida em vão

O chão é mais perto

do que parece [3]

Pare perto cheire e parta

antes que a lua apareça e

reverta a noite em luz.

O vazio e a desesperança transmutados no dilatado presente viral. Seguimos na tempestade, flor entre os dentes [2], enquanto a noite cai sobre todos os vivos e todos os mortos. [1]

[1] O final do conto faz referência a um Os mortos de James Joyce que fecha o livro Dublinenses.


[2] Inspirado na poesia “Primavera nos dentes” do escritor Português João Apolinário musicada pelo grupo tupiniquim Secos e Molhados.


[3] A frase faz referência a uma estrofe da música “Thinks Behind the Sun” do disco Pink Moon (1972) do cantor e compositor Nick Drake


André Prada é médico e cantor.

Foto: Daniel Soares.

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