top of page

Poeshydra

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 22 de mar.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 27 de mar.

Memorial Poético dos Anos de Chumbo

Por Maurício Simionato


Este livro, lançado em fevereiro passado em São Paulo, é uma antologia que reúne 200 poemas de 90 poetas que escreveram sob o jugo dos horrores da ditadura militar brasileira, que ocorreu de 1964 a 1985.


Em um contexto atual no qual assistimos uma nova tentativa de golpe há dois anos e ainda nos deparamos com pessoas defendendo a ditadura e a intervenção militar, a antologia poética se faz mais do que necessária e é muito bem-vinda.


A publicação nasceu a partir de um projeto de pesquisa que visa criar um repositório de poemas brasileiros escritos no país durante a ditadura militar, contando com pesquisadores de várias instituições e estados, aberto à colaboração de leitores e estudiosos para sugerir poemas a integrar o levantamento.


A obra reúne diversos nomes consagrados da literatura nacional – como João Cabral de Melo Neto, Hilda Hilst, Ferreira Gullar, Murilo Mendes, Augusto de Campos e tantos outros – ao lado de poetas que ficaram relegados pela crítica e pelo mercado editorial após a redemocratização.


Seja pela censura, pela sensação de sufocamento, pelo exílio, pela prisão ou mesmo pela tortura e assassinato, todos estes poetas foram impactados pelo regime autoritário instaurado no país. O testemunho presente nos versos destes poetas produz diferentes formas de denúncia e elaboração dos traumas pessoais e coletivos decorrentes dos anos de chumbo.


Trata-se, assim, do mais completo panorama da poesia brasileira das décadas de 1960, 1970 e 1980 a partir de sua inscrição forte na História e nas lutas políticas do período, evidenciando a diversidade de estratégias mobilizadas por poetas experimentais, engajados, marginais, populares, tropicalistas e inclassificáveis para responder à opressão dos governos militares.

Ao mesmo tempo, pelo rigor e amplitude da seleção dos poemas reunidos nesta antologia, a força estética desses textos atualiza o seu sentido no presente, levando a refletir sobre permanências e desafios que o Brasil ainda enfrenta na elaboração das memórias dos anos de chumbo.


Esses poemas foram destacados de um conjunto muito maior. No total, o grupo de pesquisa, que envolveu pesquisadores de todo o país, montou um acervo com 1.500 textos que estão disponíveis online: https://mpac.ufes.br/



Confira abaixo algumas poesias feitas durante a ditadura militar


Imagem noturna de Copacabana

(Abdias do Nascimento)


Nascido no exílio me disseram um dia:

— Este é o teu país

Olhei em torno

e não me reconheci nas coisas que me

rodeavam

Deverei também cantar o Brasil?

Antes de sentir

adivinhei o perfume noturno da minha Pátria

Chegue perto bem perto amor

Chegue mais bem pertinho de mim

Que teus escuros braços

me enlacem o peito assim

me tomem o negro coração em teus abraços

Me aconchegue bem amor assim

Suplico a proteção da tua sombra

nesta noite sem imagens lunares

Me sustenta sombra-pátria

nesta revolta sem fim

Para que não se desfaça

o coração dentro de mim

Veja ao palor do néon o Banco Português

Embalado à fria guarda dos escudos

Herdados do sangue do saque

e da sordidez

A madrugada acalenta o banco

os escudos

e vela o sono de uma negra velha

sob a marquise em leito de farrapos

O fervor do meu ódio e rancor mudos

afague o frescor do teu beijo

Que a doçura do teu pejo

não detenha a ira do meu punho

nem dilua o vibrar da minha tensão

neste ato de revolta em compulsão

Onde está o meu País?

Ao embalo matinal dos pesadelos

À visão do banco

e da minha raça atirada ao lixo

Os sentimentos bradaram Ogunhiê!

as ideias se fizeram armas

e o ódio não se consumiu em vão

Ó pátria queimada de amor demais

negro perfume meu

Celebro aqui tuas forças misteriosas

que alimentam nossa vida

na esperança que sustenta a luta

no amor teu

que é história

é luta passada

é glória

é luta de libertação

Agora


O país de uma nota só

(Carlos Marighella)

 

Não pretendo nada,

nem flores, louvores,

triunfos.

Nada de nada.

Somente um protesto,

uma brecha no muro,

e fazer ecoar,

com voz surda que seja

e sem outro valor,

o que se esconde no peito,

no fundo da alma

de milhões de sufocados.

Algo por onde possa filtrar o pensamento,

a ideia que puseram no cárcere.

A passagem subiu,

o leite acabou,

a criança morreu,

a carne sumiu,

o IPM prendeu,

o DOPS torturou,

o deputado cedeu,

a linha dura vetou,

a censura proibiu,

o governo entregou

o desemprego cresceu,

a carestia aumentou,

o Nordeste encolheu,

o país resvalou.

Tudo dó,

tudo dó,

tudo dó...

E em todo o país

repercute o tom

de uma nota só...

de uma nota só...

 

*Memorial Poético dos Anos de Chumbo, com poemas de: Adriano Espínola Affonso Ávila Affonso Romano de Sant’Anna Afonso Henriques Neto Alex Polari Alice Ruiz Alípio Freire Álvaro Alves de Faria Ana Cristina Cesar Anderson Braga Horta André Bueno Antonio Carlos Secchin Aristides Klafke Armando Freitas Filho Augusto de Campos Aybirê Ferreira de Sá Bernardo Vilhena Braulio Tavares Cacaso Caio Fernando Abreu Carlos Marighella Celso Marangoni Chacal Charles Peixoto Claudio Willer Domingos Pellegrini Eduardo Alves da Costa Emílio Ivo Ulrich Eudoro Augusto Félix de Athayde Ferreira Gullar Francisco Alvim Geraldo Carneiro Gilney Viana Glauco Mattoso Heleno Godoy Hilda Hilst Ivan Lemos Jessie Jane João Cabral de Melo Neto José Carlos Capinan José Paulo Paes Kiko Ferreira Laís Corrêa de Araújo Lara de Lemos Lêdo Ivo Leila Míccolis Leonardo Fróes Libério de Campos Loreta Valadares Luis Fernando Verissimo Luiz Eurico Tejera Lisbôa Maciel de Aguiar Manoel de Barros Marcelo Mário de Melo Maria Cristina Ferreira Mário Chamie Mário Jorge Vieira Mario Quintana Millôr Fernandes Moacyr Félix Murilo Mendes Nicolas Behr Olga Savary Orides Fontela Oswald Barroso Patativa do Assaré Paulo Augusto Paulo César Fonteles de Lima Paulo Leminski Paulo Mendes Campos Paulo Roberto Sodré Pedro Casaldáliga Pedro Tierra Pedro Xisto Raimundo Santa Helena Raphael Martinelli Regina Braga Régis Bonvicino Renata Pallottini Ricardo Vieira Lima Roberto Schwarz Ruy Espinheira Filho Thiago de Mello Torquato Neto Ulisses Tavares Vanderley Caixe Waldo Motta Wilma Ary * Zulmira Ribeiro Tavares


A edição é da Zouk. Clique no link para comprar:

 

 

Maurício Simionato é poeta e jornalista. Como poeta, lançou os livros Impermanência (2012) — selecionado pela Secretaria de Cultura de Campinas —, Sobre Auroras e Crepúsculos (Multifoco, 2017) — lançado na Bienal do Livro do Rio/2017 —, e O AradO de OdarA (Uma distopia tropical) (Patuá, 2021). O autor também tem poemas publicados em diversas revistas especializadas em literatura, assim como em mais de 15 antologias poéticas. Foi três vezes finalista do Prêmio Off Flip (2020, 2021 e 2023) e, ainda, finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (2019).

 

 

 

 

 

 

 

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page