Uma canção desafinada de Luísa para Ravi
Por Lia d’Assis
É baseado em fatos (ir)reais. Embora Luísa e Ravi sejam personagens, eles evocam fatos e emoções vividas por todos nós durante uma recente e dolorosa fase da nossa história, entre março de 2020 e julho de 2021, o período de isolamento causado pela pandemia do coronavírus.
O canto de Luísa é um ato de resistência diante da morte. Amar é um ato subversivo, literalmente, não apenas porque rompe o isolamento obrigatório, mas porque subverte o sentimento apocalíptico, de fim iminente e inescapável.
Como afirma Ana Cláudia Romano Ribeiro, no posfácio da obra: “os poemas deste livro são poemas de gênese, de fecundação, de novos inícios”. E que compõem um híbrido entre lírica e narrativa: é possível ler seus poemas isoladamente, ou em uma sequência que compõem uma história – ao longo da qual Luísa e Ravi não são apenas amantes, mas “metáfora de palavra e melodia”.
1
Solitários descem os caixões à terra
Como sementes lançadas ao solo.
Já não posso cantar, já não há palavras –
Dizes no desconsolo de sobreviver aos poucos.
A morte multiplica-se pelos campos
Coincidindo semeadura e colheita:
Veloz a levar vidas por minuto
Ceifando esperança, prolongando prantos
Encorajando-nos apenas a tecer
Tristes, de antemão, nossa mortalha.
Ainda assim, vive,
insiste em teu canto, como aquele cisne
que o sabe mais belo quando a morte é perto.
10
Em meu delírio mais lírico
ininterrupta pelas ruas
saio
caminho até tua porta
sem trégua, entro
em tua casa, intrusa
e sem convite ou palavra
tua vida, tua tarde
invado
preencho tuas horas
de imprevistas carícias.
Mas como não posso,
só passo fugidia
por teus devaneios.
18
Em palimpsesto
nossos nomes sob camadas
textos de inomináveis eras
nossos nomes à espera
de corpos-lacunas
pulsante matéria.
20
Enredo-te intensa em minhas teias líricas.
Tocas-me apenas com tua voz e canção
e causas-me o frêmito de uma carícia.
Antecipo tuas mãos em meu corpo
teu beijo em meu pescoço
tuas pernas e as minhas
em bailado sôfrego.
Distância desmede desejo
privada de tua pele
dispo-me em palavras
todas elas no chão
mostro-me mais que nua.
E assim me vês sem me olhares
e me tomas sem corpo
nunca tão íntimo quanto longe...
50
Desperta ouço
a sinfonia dos pássaros
chamando o dia
consolo dos insones
que despendem a noite
sem o descanso dos olhos
mas são os primeiros
a contemplar a manhã
assistir ao nascer da luz.
E no meio do fundo da dor
uma força nasce, imprevista
e decido adiar mais um dia
a morte e seu manto de escuridão
e depois, quiçá, mais um dia
dizendo sempre à inevitável visita:
hoje não, talvez mais tarde
que assim eu me atrase
a chegar ao sombrio Hades.
Serviço
Uma canção desafinada de Luísa para Ravi
Autora: Lia d’Assis (@liadassis)
Editora Patuá
R$ 50
À venda pelo site https://www.editorapatua.com.br/uma-cancao-desafinada-de-luisa-para-ravi-poemas-de-lia-dassis/p e diretamente pela autora.
Lia d’Assis nasceu no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, no verão de 1979. Graduada em Letras, mestra em Educação e doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Trabalhou como colaboradora editorial e, atualmente, é professora de literatura no Instituto Federal de São Paulo (IFSP). É autora dos livros: “Falso Infinito” (Patuá, 2021) e “Nem asas pelos ares” (Urutau, 2017).