Luz Profana
- URRO
- 1 de out. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
Quando o mundo está em chamas, a arte grita
Por Carlota Cafieiro

Ride - Philipi Guston 1969
Artistas são atravessados pelos fatos e acontecimentos tanto quanto qualquer outra pessoa. A diferença é que transmutam sentimentos, reflexões e emoções em obras que gritam: “Acorde!”. Mas o mundo, em momentos cruciais da história, parece mergulhado em sono profundo ou num coma irreversível. Ainda assim, mesmo trabalhos realizados em outras épocas continuam gritando para o árido deserto da ignorância.
O argentino Léon Ferrari (1920-2013) denunciou o absurdo da Guerra do Vietnã, assim como a violência propagada pelos dogmas da Igreja, por meio de objetos e colagens que misturavam o grotesco, o didático e o escárnio. Chegou a enviar cartas ao Papa João Paulo II, pedindo o fim do Inferno e do Juízo Final.
Em sua trajetória, marcada pela ditadura militar de 1976 a 1983 e o silêncio sepulcral da Igreja Católica, o artista realizou duas linhas de trabalho: “Quando faço desenhos e aquarelas, não pretendo significar nada, deixo para aquele que a observa a liberdade de interpretar, ou não. Outra coisa é quando faço uma colagem sobre religião ou política em que proponho usar a arte como meio de expressão”.
Outro artista que utilizava o figurativo para gritar à sociedade foi o canadense Philip Guston (1913-1980). O pintor modernista começou a carreira na década de 1930, época em que se radicou nos Estados Unidos e testemunhou o linchamento da população negra por integrantes da organização supremacista branca Ku Klux Klan (KKK).
Depois disso, se dedicou à arte expressionista abstrata até os anos 1960, quando voltou ao figurativo após o início da Guerra do Vietnã, “quando fez uma revolução pessoal e passou a se questionar porque deveria ‘ajustar o vermelho a um azul’ enquanto o mundo pegava fogo” – conforme revela reportagem de 29 de setembro de 2020, no Jornal de Brasília.
O fato é que, 40 anos após sua morte, a exposição Philip Guston Now, que abriria as portas na Tate Modern, em Londres, e passaria por três cidades estadunidenses, foi adiada para 2024, pelo temor dos diretores das galerias de provocar reação negativa do público, num contexto em que a luta antirracista não só reascendeu como está em chamas na Europa e EUA.
Em comunicado, os diretores da Tate Modern, da National Gallery de Washington, do Museu de Belas Artes de Boston e do Museu de Belas Artes de Houston afirmaram que a exposição será inaugurada “no momento em que acharmos que a mensagem de justiça social e racial que está no centro do trabalho de Philip Guston possa ser mais claramente interpretada”.
Mark Godfrey, curador da Tate envolvido há anos na produção da exposição, escreveu que o adiamento é provavelmente motivado pelo desejo de ser sensível às reações imaginadas de determinados espectadores e por medo de manifestações de repúdio.
O mundo está dividido. A Guerra Fria, que dá nome ao longo período de tensão geopolítica entre EUA e a extinta União Soviética, entre 1947 e 1991, ergueu um muro imaginário entre os blocos capitalista e socialista, se diluiu nesse novo milênio. Agora, os muros separam pessoas, famílias e outras instituições.
Se pai ou mãe não tem tolerância com o filho que pensa diferente e vice-versa, o que dirá de um artista que usa a sátira para retratar terroristas de capuzes pontudos em situações triviais, como na pintura de 1969, intitulada Riding Around (do inglês, “andando por aí”)?
Carlota Cafiero é jornalista e historiadora da arte.
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