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Luz Profana

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • há 4 dias
  • 7 min de leitura

Meu primo artista

Por Carlota Cafiero


Você também faz confusão com o grau de parentesco de membros distantes da família? Pois é, minha cabeça de jornalista “deu um nó” quando um entrevistado me respondeu assim: “Eu herdei estes pincéis do tio do tio do meu avô”. Aí, lascou, não escutei mais nada do restante da entrevista enquanto eu tentava resolver mentalmente a genealogia familiar do meu interlocutor.


É o caso do primo do meu pai. Ele é meu primo de segundo grau, certo? Mas e o filho da minha prima, é também o meu primo de segundo grau? Aprendi que sim, e aprendi também que os primos são nossos parentes de quarto grau, na linha de consanguinidade: de primeiro grau, são nossos pais; de segundo, nossos irmãos; de terceiro, nossos tios.


Um primo de segundo grau a gente não sente muita obrigação ou inclinação a conhecer, não é mesmo? Nas relações familiares líquidas (para não perder a moda de citar Bauman) de hoje em dia, um primo ou prima de segundo grau é um familiar muito distante, ou, pelo menos, costumava ser, até eu conhecer um primo meu de segundo grau a quem eu gostaria, muito, de ter conhecido e convivido antes: Mario Cafiero.


Com intensa contribuição à imprensa e às artes plásticas brasileiras, Mario Cafiero é editor e diretor de arte, ilustrador, designer gráfico, designer de objetos e pintor. Expôs em relevantes galerias e salões, incluindo a Bienal Nacional de 1976. Seu ateliê funciona no apartamento em que mora há pelo menos três décadas, na Bela Vista, em São Paulo, onde mantém sua galeria, com peças produzidas ao longo de 55 anos de carreira.


Sua obra abrange desenhos, objetos, pinturas figurativas e abstratas líricas, caracterizadas pelas pinceladas expressionistas e o forte colorido, com ênfase em retratos, naturezas-mortas e paisagens urbanas, como a mais recente série, na qual faz uma releitura vibrante das fachadas de prédios, casas comerciais e muros pichados e grafitados de São Paulo.


Com carreira nacional e internacional, Mario ilustrou e editou diversas publicações da Editora Abril (especialmente a revista Claudia), e obras literárias e paradidáticas da editora Ática – é citado três vezes pelo histórico editor Jiro Takahashi, fundador da Ática, no volume de número 11 da coleção Editando o Editor, da Edusp, lançado em abril deste ano.


Takahashi marcou o seu nome no mercado editorial brasileiro ao criar as coleções Para Gostar de Ler e Vaga-Lume, que marcou gerações como a minha. Mario foi ilustrador de diversos títulos para as duas coleções, e fez capas icônicas, como a do livro “O Escaravelho do Diabo”, de 1970, de Lúcia Machado de Almeida (Coleção Vaga-Lume). Na foto feita por mim que ilustra esta crônica, Mario aparece segurando a tela com sua pintura do tal escaravelho para o livro.


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A capa icônica do livro “O Escaravelho do Diabo”, de 1970, de Lúcia Machado de Almeida

Durante a ditadura militar no Brasil, meu primo foi diretor de arte em Londres, onde era editada a versão brasileira da revista Visão (que circulou entre 1952 e 1993). Suas ilustrações também foram publicadas em jornais como Folha de S.Paulo, e usadas em anúncios e embalagens.


Conheceu, conviveu e trabalhou com grandes autores, como o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), e com outros desenhistas e artistas que se tornaram referência, como Guto Lacaz, seu amigo, que editou o livro “Beauty & Fashion” (Ateliê Editorial), de 2003, que reúne 30 anos de ilustração de Mario.


Em entrevista para a Global Editora, em 2024, Mario contou como entrou para o mundo editorial: “Desde muito cedo gostava de desenhar, meu pai era impressor gráfico e sempre trazia bloquinhos de papel para eu desenhar. Comecei a trabalhar na imprensa aos 15 anos numa editora que publicava a revista Melodias, de música, onde publiquei as minhas primeiras ilustrações. Aprendi a trabalhar com os materiais utilizados na época, como nanquim, bico de pena e outros”. Ele está falando do meu tio-avô Mariano Cafiero, a quem eu não conheci, mas sei que foi quem fez e imprimiu o convite de casamento dos meus pais.


Mario era uma figura meio mitológica para mim, pois, desde criança, eu ouvia falar do parente artista, sobretudo da boca da minha tia paterna, Lizete, prima de primeiro grau do Mario, de quem ela ganhou uma bonita serigrafia da cantora Elizeth Cardoso, assinada por ele.


Lizete era a minha tia mais “chegada”. Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, boêmia, vanguardista, ela viveu intensamente os anos de chumbo em São Paulo: fugiu da polícia, cantou na noite e fez teatro com Augusto Boal, mas não seguiu adiante com a vida artística. Depois de formada, abriu um escritório na Paulista e foi muito bem-sucedida no direito imobiliário. Mais velha, ela costumava levar a mim e a minha irmã caçula para noitadas em São Paulo e Campinas, quando ia nos visitar, nos anos 1990 e começo dos 2000.


Àquela época, além de escrever, eu desenhava, pintava e modelava em argila, tudo de maneira amadora. Gostava de saber que, na minha família, havia um parente talentoso e influente no meio artístico e intelectual como o Mario, apesar de nunca ter me encontrado com ele.


Nasci na Capital, mas cresci em Campinas, onde prestei, e não passei, no vestibular para Artes Plásticas na Unicamp – minha formação em Magistério não me preparou para provas tão exigentes. Como eu também gostava de escrever e acompanhar a cobertura cultural na imprensa, eu prestei, e desta vez, passei, em Jornalismo, na PUC-Campinas, e atuei como repórter cultural por mais de dez anos no Interior, cobrindo, sobretudo, artes plásticas.


Voltei a visitar muitas vezes a minha tia Lizete em São Paulo, mas nunca ocorreu do primo Mario estar com ela ou dela promover um encontro com ele. A oportunidade de conhecer o meu primo parecia distante para mim.


Mudei-me para Santos, onde continuei fazendo reportagens sobre trajetórias e processos de criação dos artistas. Tais reportagens, junto com meu marido, o fotojornalista Claudio Vitor Vaz, deram origem ao projeto “Por Dentro do Ateliê”, que consiste em exposição e livro sobre artistas visuais de Santos. O livro vai para o segundo volume em novembro deste ano, por meio do Concurso de Apoio a Projetos Culturais Independentes de Santos.


Em junho de 2023, perdi minha tia Lizete, aos 78 anos. Com isso, perdi também a minha conexão mais forte com São Paulo e com a família Cafiero, exceto meu pai. E foi só então que entrei em contato com Mario Cafiero, por e-mail, pois precisei pedir informações sobre o jazigo da família, no Cemitério do Araçá. Meu primo respondeu-me prontamente e com muita educação, e me deixou seu número. Nós nos ligamos, nos apresentamos, e passamos a nos seguir no Instagram (o dele é @cafiero.art).


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Mario Cafiero mostra a tela com sua pintura do tal escaravelho para o livro


O meu primeiro encontro com Mario se deu numa tarde de domingo, dia 3 de agosto de 2025. Eu e meu marido estávamos “fechando” as férias escolares da nossa filha com um passeio na Avenida Paulista, e aproveitei a oportunidade para avisá-lo que estaria ali por perto.


Ele nos recebeu no apartamento-ateliê que divide com o marido dele, o médico e psicanalista Paulo André Stockmann – numa linda parceria de 50 anos – e Lili, um buldogue francês de 15 anos, pertinho da Paulista. Foi uma enorme satisfação, para mim, conhecer uma pessoa tão agradável e um artista tão talentoso, estando ele, com 74 anos, e eu, com 50!


Elegante, vestindo roupa esporte preta, usando óculos de grau com aros grossos escuros, Mario nos recebeu surpreso com nossa chegada pela entrada de serviço, pois foi pelo elevador de serviço que subimos os 17 andares do edifício Mira. Ele esperava nos receber pela porta principal, no corredor decorado com um grande mural feito por ele, com pastilhas de vidro pretas e brancas, que formam duas zebras ladeando os elevadores.  


Mas a entrada de serviço do apartamento nos levou para a melhor parte da casa: o ateliê, que ocupa uma grande área de serviço, bastante iluminada, em que havia um cavalete com uma grande tela com retrato inacabado de Elke Maravilha (1945-2016).

“O que vocês bebem?”, perguntou Mario, respondemos “Café”. “Café não tem, mas tem cerveja”. “Como um bom Cafiero”, brinquei com ele. Mario nos serviu e, ao longo da conversa, foi preparando uma quiche com salada Caesar – achei muito chique o meu primo.


O apartamento é todo decorado com obras assinadas por Mario, incluindo séries de pinturas como as de peças tridimensionais do Museu Calouste Gulbenkian, de Lisboa, que ele visitou. O gosto de Mario pelas formas, signos e cores o leva a retratar, em tela, objetos decorativos e valiosos como vasos chineses e japoneses.

Nossa conversa ia da família para a arte e da arte para a família, quando Paulo Stockmann me levou a conhecer o cômodo em que atende seus pacientes. Não contive minha admiração ao ver um diploma de mestrado pela Sorbonne Paris V na parede, e meu queixo quase foi ao chão quando Paulo revelou que seu analista tinha sido Lacan. “Peraí, Lacan, Lacan?”, perguntei. “Sim, este daqui”, ele respondeu com o livro de Jacques Lacan (1901-1981) na mão. Depois, disse que também conheceu Michel Foucault (1926-1984).


Eu me senti muito afortunada por conhecer duas pessoas tão cultas e educadas como meu primo Mario e seu marido, Paulo. Aprendi que, enquanto vivos estamos, nunca é tarde para retomar ou tomar contato com nossos parentes, mesmo que tenha havido mágoas ou indiferenças (o que não foi o nosso caso).


Vale a pena se aproximar, pois são pessoas que contam a nossa história, fazem parte de quem somos ou nos tornamos. Sem ele saber, meu primo foi importante na minha trajetória por ser o artista da família e ter trabalhado na imprensa e no mercado editorial. De certa forma, a trajetória dele valida o meu interesse ou pendão para as artes e para o jornalismo – como algo que está no sangue, que se herda. 


O encontro em São Paulo se deu no mesmo dia em que ocorria manifestação de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro e contra o ministro do Superior Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, na Paulista. Meu primo e seu marido suspiraram aliviados ao saberem que eu não fora a São Paulo para engrossar o coro ou compartilhar dos anseios dos manifestantes.


Meus anfitriões riram-se quando contei que eu tinha “tretado” com uma apoiadora, na fila para o banheiro de uma lanchonete, após ela se dirigira a minha filha de 9 anos para pedir que ela, uma criança, “guardasse” a data histórica de 3 de agosto de 2025. A data foi histórica, sim, mas por um motivo muito particular, pois foi o dia em que eu conheci um grande artista, meu primo, Mario Cafiero.


 

Carlota Cafiero é jornalista e historiadora da arte.

 

 

 

 

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