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Luz Profana

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 1 de jun. de 2021
  • 3 min de leitura

Atualizado: 21 de jun. de 2022

A solidão sem dor

Por Carlota Cafiero



Eu sou uma pessoa que se encontra mais na dor do que na alegria, no deleite. Não na dor excruciante da perda, diante da morte de alguém amado. Mas na dor da incompreensão, da tensão, do embate entre gêneros e gerações. Minha sensibilidade aumenta na tristeza e na solidão, quando meus pensamentos se expandem, minha criatividade se revela. A melancolia é como uma velha amiga que não desejo, mas me reconheço nela.


Cresci com um pai autoritário. “Você ainda cheira a leite”, escutei até os meus 25 anos de idade, como forma de determinar que o jovem não possui experiência suficiente para opinar ou decidir algo (eu também falei algumas barbaridades em resposta). Mas fui cobrada a trabalhar cedo. Só não tinha maturidade para encarar o mercado. Durante as entrevistas, empregadores riam-se daquela menina púbere e tímida.

Diante desse embate de mundos interno e externo, eu encontrei refúgio no estudo e nas artes: os livros eram meus melhores companheiros, preencheram dias e noites, fizeram-me olhar para a minha história como uma construção que nasce dos nossos pensamentos e projeções. Deram-me força interior para encarar as relações humanas, dentro e fora da família. Hermann Hesse, Jack Kerouac, Roberto Freire (o psicanalista somático), Nietzsche, Goethe foram alguns dos meus mestres na busca de me tornar uma pessoa virtuosa.


A leitura me levou a outras artes: aprendi a pintar com tinta a óleo, modelar em argila (participei de feiras e exposições coletivas), fiz cursos livres de teatro, escrevi poesia. Em Campinas, onde cresci, assisti a muitos espetáculos, fui a muitas exposições. As obras do modernismo e de outros movimentos de vanguarda me fizeram viajar para dentro dos manifestos, rupturas e renovações.


Nesta primeira metade do século 21, com o mundo mergulhado numa quarentena sem fim, a pintura de Hopper ganha novos significados: as pessoas absortas ou entediadas, dentro ou fora de suas casas, em ruas esvaziadas, parecem habitar um mundo mergulhado num modo de espera sem fim, num eterno stand by.

O pintor estadunidense Edward Hopper (1882-1967) foi um dos artistas que aprendi a admirar. Ele é reconhecido por pintar a solidão e a incomunicabilidade entre as pessoas, especialmente no ambiente urbano, isso na primeira metade do século 20. Em suas telas, homens e mulheres aparecem em situações cotidianas, sempre solitários, em lugares recônditos como um quarto de dormir ou públicos, como vagões de trem ou cafés. São personagens em total abstração, ainda que acompanhados – eles não se comunicam entre si nem com o espectador, estão sempre focados em outra direção, para o lado da luz que invade a cena.


Curiosamente, sua obra acabou ganhando contornos psicológicos, muito por causa da assumida influência dos estudos do fundador da psicanálise Sigmund Freud e do pensamento do filósofo Henry Bergson, para quem o verdadeiro conhecimento é desenvolvido a partir da experiência interior, e o tempo físico não corresponde ao tempo real experimentado pelo espírito.


Nesta primeira metade do século 21, com o mundo mergulhado numa quarentena sem fim, a pintura de Hopper ganha novos significados: as pessoas absortas ou entediadas, dentro ou fora de suas casas, em ruas esvaziadas, parecem habitar um mundo mergulhado num modo de espera sem fim, num eterno stand by. Uma das que mais gosto tem o nome de Automat (do inglês, “automático”), de 1927 (foto), que ilustrou a capa da revista americana Time, numa edição de 1995, cuja matéria principal trazia o título 20th century blues (em tradução livre “O triste século 20”), que versava sobre ansiedade e solidão na sociedade contemporânea. Quando olho para Automat, não vejo tristeza, mas um momento raro de solitude, que é a solidão sem dor, justamente aquilo que podemos experimentar com o isolamento social provocado pela pandemia, se nos permitirmos. Nesse sentido, a arte e o pensamento podem ajudar na mediação entre nossas realidades interna e externa. Quem cultiva esse diálogo, nunca se sente totalmente só. Afinal, ninguém dá conta desse mundo sozinho.


Carlota Cafiero é jornalista e historiadora da arte.

Ilustração: Automat de Edward Hopper.

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