Luz Profana
- URRO
- 21 de dez. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
Onde há gente há dores
Por Carlota Cafiero

“O mar quando quebra na praia/ é bonito, é bonito”, canta, com voz de barítono, Dorival Caymmi na música O Mar, de 1957. A paisagem que estes versos desenham em nossas mentes é a das ondas lambendo a areia da praia. Cada pessoa pinta esse cenário de acordo com seus próprios desejos e experiências. O meu mar é verde e brilhante, a areia é branca e o céu, de um azul profundo. Já você que lê estas linhas pode imaginar o mar pintado de laranja do lusco-fusco do nascer ou do por do sol.
O que eu quero dizer com esse exemplo é que a imagem nasce do encontro das palavras com nossas experiências e ganha forma em nossas mentes. Uma imagem individualizada, que contemplamos interiormente, mas que pode se tornar coletiva se representada por meio de um desenho, uma aquarela ou uma pintura – como o fez, de maneira simples e potente, o artista e marinheiro José Pancetti (1902-1958), reconhecido pintor de marinhas (foto).
“Pescador quando sai/ Nunca sabe se volta/ Nem sabe se fica/ Quanta gente perdeu/ Seus maridos seus filhos/ Nas ondas do mar”, entoa o cantor baiano, desconstruindo a paisagem do início da canção.”
Ainda sobre a canção de Caymmi, seus versos provocam outras imagens em quem escuta. No cenário de ondas lambendo a areia, o compositor insere personagens humanas e, com elas, suas tragédias. Pois assim onde há gente há dores: “Pescador quando sai/ Nunca sabe se volta/ Nem sabe se fica/ Quanta gente perdeu/ Seus maridos seus filhos/ Nas ondas do mar”, entoa o cantor baiano, desconstruindo a paisagem do início da canção.”
Após reconhecer os perigos do oceano, Caymmi nomeia dois personagens, o pescador Pedro e uma moça do arraial, Rosinha de Chica, para cantar o amor que não se concretiza: “Pedro saiu no seu barco/ Seis horas da tarde/ Passou toda a noite/ Não veio na hora do sol raiá/ Deram com o corpo de Pedro/ Jogado na praia/ Roído de peixe/ Sem barco sem nada/ Num canto bem longe lá do arraiá”.
A dor da perda deixa sequelas: a “pobre Rosinha de Chica, que era bonita, agora parece que endoideceu, vive na beira da praia, olhando pras ondas, andando rondando dizendo baixinho morreu, morreu, morreu, oh”. A voz aveludada do autor encerra a narrativa entoando os mesmos versos do início: “O mar quando quebra na praia/ é bonito é bonito”, o que me faz pensar que nossas tragédias não alteram a paisagem.
A vida é como o mar de Caymmi, com suas ondas ora a lamber os nossos pés ora a nos puxar para suas águas profundas. Alguns não voltam.
Com suas histórias incompletas, deixam vestígios do que foram e poderiam ter sido ou feito: um amor que não se consumou, um filho que não viu a luz do sol, um perdão que não foi dado, um pudim de pão que não foi apreciado porque a morte veio antes, de forma arbitrária e violenta – porque o ser humano, assim como o mar, também é uma força da natureza, e suas reações, ondas calmas ou destruidoras.
Beto Freitas é nome de personagem real, não de uma canção de Caymmi. Negro como o compositor, não deixou pérolas musicais... deixou filhos, uma neta, a mulher, o pai e um último desejo: comer pudim de pão. Era para comprar os ingredientes do doce que ele e sua companheira estavam num supermercado na noite de 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra. Nos corredores iluminados e vigiados, por uma série infeliz de mal-entendidos e subentendidos, Beto foi envolvido pelas ondas do ódio, da intolerância e do preconceito, e arrastado para uma zona abissal. Sua passagem foi assistida por mais de uma dezena de pessoas, mas ninguém lhe jogou uma corda. Sua morte gerou outras ondas, de repúdio, protesto e mais violência. Um episódio revoltante de racismo, o que me leva a outra composição de Dorival Caymmi, Retirantes: “Vida de negro é difícil, é difícil como o quê / Meu amor, eu vou-me embora, nessa terra vou morrer”... mas a Terra, impassível às nossas perdas, continua a girar, e o mar, a quebrar na praia.
Carlota Cafiero é jornalista e historiadora da arte.
Ilustração: Mar, de José Pancetti.
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