Luz Profana
- URRO
- 22 de nov. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 25 de nov. de 2022
Colonialismo. Caliban. Retamar.
Por Daniel Costa
Quando o Antônio Cândido escreve aquele prefácio arrasador de Formação da Literatura Brasileira, em determinado momento, no fim, ele cita que já disseram por aí, que os ombros e os braços de Helena tinham o polimento deixado pelos milhares de olhos que se fascinaram com sua beleza.

Ilustração de Diego Rivera: Mural que apresenta Emiliano Zapata
A sugestão é que se a gente se dá para apreciar as qualidades de uma coisa (uma literatura, no caso), essas qualidades vão sendo organizadas para que seus efeitos coincidam cada vez mais com aquilo que são. Geral, o coletivo acessa melhor aquilo que possui. Se quiserem: a sociedade vai fortalecendo sua cultura em si e para si.
Por outro lado, a negligência e o descaso vão deixando as coisas tão enferrujadas, que coisas importantes não conseguem encontrar o seu destino.
Cito, a título de exemplo que, dia 22 de outubro do ano passado, Ferréz foi entrevistado no centésimo episódio do podcast Página Cinco. Em determinado ponto, o Ferréz (cujo livro mais célebre no Brasil é “Capão Pecado”, no exterior: “Manual Prático do Ódio”) conta que, apesar de já ter sido traduzido em quase vinte idiomas, não consegue espaço para apresentar originais de novos livros a editoras brasileiras.
Conta ainda, em outra passagem, que quando é convidado a participar de eventos internacionais de literatura, vê autories brasileires não se declararem autories brasileires, mas autories do mundo. Se reconhecem como escritories de uma literatura universal. Aí ele descobre que ele mesmo, considerado aqui não um autor nacional, mas um autor periférico, é lá fora quem assume a representação nacional.
Dá pra fazer umas contas com isso que foi relatado ano passado, mas que acontece toda semana faz mais de século.
O Brasil resiste a identificar a cultura periférica como cultura nacional porque isso implicaria admitir, no centro de nossa imaginação, que este é um país segregado e que ele se expressa na voz do excluído. Por outro lado, a cultura produzida nos espaços de privilégio é celebrada como cultura nacional, contudo ela tem como ideal superar as particularidades que a faz brasileira e se identificar com a cultura universal, isto é, a cultura exclusiva de um mundo segregado.
Aí está o fio de nossa meada: Ariel e Caliban.
O maestro cubano Fernández Roberto Retamar (9 de julho de 1930 – 20 de julho de 2019) escreveu o primeiro dos ensaios referenciados em Caliban em 1971. O escreveu, portanto, entre a posse do socialista Salvador Allende, eleito democraticamente no Chile, e seu assassinato no golpe de 73. O período certamente inspira alguma esperança e algum altivez que transparecem no texto.
Ele recomendava enfaticamente que todo mundo lesse Nuestra América, de José Martí. Eu não posso ser suficientemente enfático em recomendar que todes leiam Caliban, de Retamar.
Na abertura do ensaio, ele conta um caso de quando estava em Paris e estava discutindo a respeito de Cuba com um jornalista europeu, de esquerda, e aí no meio da discussão esse cara pergunta a ele: “existe uma cultura latinoamericana?”.
Não sei se a razão de ser dessa pergunta é tão intuitiva assim, mas ela caminha pelo seguinte: a cultura da América Hispânica não é a cultura espanhola trazida para as Américas? A cultura brasileira não é a cultura portuguesa que ficou por aqui, modificada pelas circunstâncias locais? A Jamaica não é uma herança inglesa? O Haiti, inventado pela França? Porque na América Hispânica se fala espanhol, no Brasil, português, no Caribe, francês, inglês, espanhol, holandês. O jornalista trucava que a América Latina era invenção da civilização europeia que, por meio da colonização, se estabeleceu por aqui com as distorções que lhe couberam.
O Retamar diz que tomou a pergunta como se fosse duvidado: “vocês existem?”.
Caliban é referência a uma obra inglesa: A Tempestade, a última peça concluída de Shakespeare. É possível assistir um resumo curto dela aqui, com legendas em português disponíveis.
Há uma tradição em se fazer uma leitura de A Tempestade como uma alegoria para os processos de colonização. Nela, há o feiticeiro Próspero, ex-duque de Milão, deposto e exilado em uma ilha deserta com sua filha; há Ariel, o espírito nobre do ar que serve a Próspero em pagamento de uma dívida; e há Caliban, único nativo da ilha, escravizado e desprezado por Próspero.
No pensamento latinoamericano, há um debate antigo em que, tomado Próspero como representação do colonizador europeu, se pergunta a quem corresponderiam simbolicamente Ariel e Caliban.
Essa questão foi elaborada no século 19, que é o momento em que as classes dominantes nas colônias latinoamericanas elaboram os interesses de sua independência política e colocam-se em movimento para concretizá-la. Isso significava internalizar as formas de controle social que, até então, estavam localizadas no pacto colonial, na relação com a metrópole e que, agora, vinham compor as nações e, especificamente, seus Estados.
Essa história se desenrola entre as classes dominantes num jogo de identificação cultural e diferenciação de interesses que produz discursos mais ou menos em dois sentidos.
No sentido externo, internacional, o discurso de que os processos de independência representam a luta pela modernidade nas sociedades latinoamericanas, atualizando-as ao mundo, e o mundo com elas, em situação de maioridade para compor uma mesma civilização (europeia, ocidental), agora na condição de nações autônomas.
No sentido interno, da formação nacional, o discurso da civilização contra a barbárie. Isto é, o discurso que organizava o conflito entre os grupos dominantes (que se identificavam culturalmente com as sociedades europeias), e os grupos oprimidos (indispensáveis à exploração econômica e inadmissíveis aos ideais de modernidade).
Acho que valeria a pena, aqui, citar do dicionário de filosofia (Thomas Mautner, 2011) uma pista do que seria a modernidade:
“s. 1) Um período histórico a que se atribui o caráter “moderno”. O período é especificado de maneiras diferentes. No núcleo desta concepção está o mundo dos séculos XIX e XX de Estados-nação, democracia política, capitalismo, urbanização, literacia generalizada, meios de comunicação popular, cultura poular, racionalidade, antitradicionalismo, secularização, fé na ciência, empreendimentos industriais em larga escala, individualismo, ideais do Iluminismo e uma ideologia pública na qual são proeminentes os ideais liberais, progressistas e humanitários. Diferentes combinações destes aspectos podem ser encaradas como essenciais para a modernidades e usadas para a definir. 2) O caráter do período descrito acima.”
Esse jogo de conflitos vai inspirar as sociedades latinoamericanas a identificar, elogiar e buscar um ideal no modelo dos Estados Unidos: políticas sistemáticas de extermínio indígena e segregação da população negra.
Economizo em citar aqui os discursos que o ensaio apresenta e analisa.
Mas, o que se desenha, é que o dilema da identificação latinoamericana entre Ariel e Caliban se refere a uma questão específica de sociedades de origem colonial e que coloca na raiz de sua modernidade uma fratura: Civilização ou barbárie? Homens brancos ou populações de cor? Metrópole ou Colônia? Primeiro mundo ou terceiro mundo? Avançados ou primitivos? Autories do mundo ou autories periféricos?
Numa visão eurocêntrica de mundo, a América Latina seria o caso particular de uma história universal. Ela aparece aí como ponto exótico, como versão distorcida de um ideal de civilização que tem nos países desenvolvidos a referência de toda sociedade humana.
Retamar, em contraponto, se engaja com uma tradição – que talvez tenha em Darcy Ribeiro um de seus maiores representantes brasileiros – que argumenta: não é certo dizer nem que as sociedades latinoamericanas são uma cópia distorcida do ideal ocidental e nem que elas são essencialmente o que foram seus povos indígenas originários.
Daí a referência de José Martí no pensamento do Retamar. Martí lutou na guerra de independência de Cuba, foi patrono de sua Revolução e foi uma voz antiracista na modernidade do século XIX porque identificava seu compromisso com as classes exploradas.
Ele propõe que a população latinoamericana tem como traço distintivo a síntese mestiça entre populações negras, indígenas e europeias.
Seria algo novo, original, surgido entre violências e resistências ocorridas no sistema colonial.
A segregação racial aparece então como produto da opressão de grupos dominantes que impedem à América Latina se reconhecer consigo mesma, porque ao perpetuar formas coloniais de exploração interna e submissão externa, generalizam uma identificação cultural com os colonizadores.
Daí o compromisso entre revolução, socialismo e antiracismo. Daí que Retamar proponha nosso símbolo: Caliban:
“A língua me ensinastes; e meu ganho nisso
É saber maldizer;
Que a praga vermelha caia sobre vós
Por me fazeres aprender vossa linguagem!”
A Ariel, Retamar corresponde a intelectualidade latinoamericanos que atualiza a ideologia colonial a cada época. Na nossa: intelectuais que colaboram ideologicamente com o imperialismo americano. A pista que nos é fornecida é prestar atenção às fundações, estando à procura dessa dicotomia Civilização-Barbárie que denuncia a ideologia do opressor, ainda que disfarçada.
A mobilização da figura de Caliban por Retamar ajuda a ler no que se escreve. Há comentadores que falam em giro calibanesco, calibanismo, visão de Caliban.
Entendo que esses termos se referem a essa possibilidade de mobilizar uma agressão ao privilégio europeu e estadunidense, ocidental, portanto, de atualizar e generalizar condições de alteridade, identificação e imaginação contra uma hierarquia racista e colonial ao mesmo tempo.
Em outras palavras, são possíveis outros modos de ser e viver que não sejam aqueles constrangidos pelo ideal masculino, branco, capitalista, ocidental.
A abertura que se ganha, inclusive, é, por um lado, resgatar as partes da cultura estigmatizadas sob a pecha da barbárie, da marginalidade, do primitivo. Por outro, denunciar a alienação, o ridículo e o violento na formação dos cânones culturais.
Antônio Cândido era ideologicamente crítico e não colaborava com o imperialismo. Contudo, é notável em sua obra a referência entre o avançado (europeu) e o primitivo (brasileiro), entre as nações que presidiam o modelo ideal de civilização (no ocidente europeu) e as nações que se correspondiam como casos particulares. Há a presença dessa penosa dicotomia, pelo menos em Formação da Literatura Brasileira e em Literatura e Subdesenvolvimento, para citar diferentes momentos de sua obra.
Particularmente, faço essa leitura e acho que Retamar dá uma colaboração que nos permite até acusar e ponderar equívocos por parte de Antônio Cândido.
Hoje, temos uma relação ambígua com a modernidade. Discute-se a sua superação, o famoso pós-modernismo, mas ele ocorre como a imaginação de um mundo que recua frente às insuficiências com que foram enfrentadas formas tipicamente modernas de violência.
Ao contrário, as realiza em contextos ainda mais trágicos de desigualdade de forças.
O caráter socialista da crítica de Retamar é especialmente sóbrio, não por propor uma outra forma de imaginar a América Latina (e o mundo), mas de imaginar um outro modo de transformá-la na prática.
Para a cultura, isso significa reconhecer — conhecer novamente algo que foi estranhado — e organizar e aproximar organizações à realidade da luta de classes.
Bibliografia
Fernández Roberto Retamar: “Todo Caliban”.
Shakespeare: “A Tempestade”.
Carlos Aguirre Aguirre: “Invenciones de Caliban: cultura, humanismo y posoccidentalismo en Roberto Fernández Retamar”.
Daniel Costa é poeta.
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