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Luz Profana

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    URRO
  • 2 de set. de 2022
  • 5 min de leitura

Atualizado: 5 de set. de 2022

Cultura, colônia, nação e Antônio Cândido

Por Daniel Costa


Essa coluna inaugura uma série que tenta contribuir para apresentação e difusão do pensamento social no campo da literatura e da cultura. Ela recupera textos inicialmente preparados para o Espaço Cultural Luís Fernandes, de Valinhos (SP), os revisa e tenta levar adiante os temas.

Birds of Paradise, 2018; obra de Abe Odedina



A proposta é a seguinte. A cada número da revista, apresentar, em um texto curto, alguns temas de literatura e cultura. Especificamente, fazer a apresentação das reflexões de algume intérprete cultural: Silviano Santiago, Iumna Maria Simón, Roberto Retamar, dentre outres.


Já é possível notar, faço uma opção de redação flexionando os termos, quando possível, em gênero não-binário. A faço no limite de minhas capacidades em manejar essa nova gramática que, reconhecemos, ainda está em desenvolvimento.


Os temas dessa série, eu gostaria de propô-los no sentido de um interesse geral, gostaria de romper uma noção até compreensível de que esse é um tema acadêmico, voltado para acadêmicos. Acho que esse tipo de perspectiva é justificado porque a educação ainda possui muitos latifúndios, latifúndios de saber que fazem possuídes e despossuídes.


Às vezes, a despossessão ataca le despossuíde por dentro. Ataca elu por fora, como privação, mas também ataca elu por dentro, como desenraizamento, um sentimento de não ter pertencide e nem ter pertences. E aí, às vezes, pode parecer que a gente tem essa falta de saberes, ao mesmo tempo em que esses saberes parecem que não têm a ver com a gente.


Eu mesmo não tenho formação no campo das letras ou das artes. Essa série de artigos é uma tentativa de compartilhar o que aprendi e, seria ainda mais feliz, provocar um diálogo para fazer o aprendizado avançar coletivamente.


Estou convencido de que as melhores possibilidades de cada pessoa só se realizam quando conseguimos mediar, coletivamente, herança do passado, experiência de presente e esperança de futuro. Daí essa proposta de repercutir os pensadories da cultura, em geral, e da literatura, em específico.

***

Quem vai estudar os temas da cultura no Brasil descobre que há um nome incontornável: Antônio Cândido. Isso porque ele se deu ao trabalho com coisas muito trabalhosas. E, o que ele fez é uma conquista de um povo mais ou menos atento aos seus perigos.


O Antônio Cândido é um brasileiro do pós-Guerra. Ele nasceu no dia 24 de julho (eu, no 22) de 1918 (eu, um pouco depois) e morreu no dia 12 de maio de 2017. Sua obra mais impactante é a monumental “Formação da literatura brasileira: momentos decisivos”, escrito em dois volumes entre 1945 e 1951, publicado em 59.


Essa época em que tantos intérpreties do Brasil estavam produzindo suas obras, entre 1940 e 1960, é muito especial. Estamos falando dos anos que vão da Ditadura Vargas e da formação do Estado Nacional no Brasil, até a conclusão do Plano de Metas de Juscelino Kubitscheck que deslanchava a industrialização.


Era uma época em que o Brasil olhava para o seu passado (latifundiário, escravagista, dependente) e sonhava com o futuro, isto é, uma nação capitalista industrializada que ocuparia seu lugar de maioridade no mundo ocidental. Era um sentimento de desenvolvimento, de passagem entre a colônia que foi e a nação vindo a ser.


Imagem do passado. Imaginação do futuro.


É nesse contexto que Antônio Cândido vai olhar, olhando os séculos XVIII e XIX, o vai e vem da sociedade que é transformada, modifica sua imaginação e, com isso, imagina poder se transformar de outros modos. Então, se move.


Dentre as muitas coisas que entram em jogo nesse lance, a literatura cumpria um papel de elaboração cultural que talvez não seja intuitivo nos dias de hoje. E, em “Formação”, ele está tentando entender se existe um sistema literário nisso que se pretende dizer e se fazer um país.


Talvez, pretendendo fazer um pouco da nação ao explicá-la?


Deixo uma citação de seu prefácio:


“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimação penosa da cultura europeia, procuravam estilizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam — dos quais se formavam os nossos.”


Pois é, brasileires.


No argumento do Antônio Cândido, o que veio a ser a literatura brasileira foi se dando através de uma tensão entre o particular e o universal.


Tento ser super econômico: a questão de como participar do mundo que participamos, para nós que temos uma origem colonial, significa tentar uma mediação entre duas coisas: a imposição de formas universais de expressão e a expressão das formas particulares de nossa vida.


As classes dominantes, em nossos momentos decisivos, encaminharam esse dilema com o que ele chamou de tendência genealógica. Ela consistia em olhar o passado de viés, tentando elaborar, a partir dele, elementos que cumpriam uma dupla função: corresponder essas classes com os ideais de outros grupos dominantes europeus e, ao mesmo tempo, autenticar a natividade delas na sociedade local que dominavam e exploravam para si.


Literatura: cultura do colonizador, herança do colono, libelo do oligarca.

Vale a pena perguntar, na nossa atualidade, em quais movimentos da cultura há uma tentativa parecida, isto é, onde um mito nativista, nacional ou patriótico é inventado para dar verniz a grupos ávidos por se corresponder com potências externas.


Também vale a pena ter em mente o enorme significado das aparições, por exemplo, de Maria Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, dentre outras. Quero dizer, não apenas o fato delas terem escrito e de terem sido publicadas, mas o fato de que um movimento forçou sua admissão como nossa literatura.


As integrou, de algum modo, a muito custo, ao nosso sistema literário. Este é outro conceito importante do Antônio Cândido. A ideia de que algo especial acontece quando ocorrem, ao mesmo tempo, um conjunto de escritories mais ou menos conscientes de seu papel, um público e uma linguagem comum que dá jeito às obras e à leitura. Isso tudo junto, possibilita algo essencial para que a literatura se constitua como fenômeno civilizatório: uma tradição que se forma e que cada atualidade verifica para recolher e superar.


Superar a exclusão sistemática das classes oprimidas, das vozes populares, é ainda uma tarefa por fazer.


Es intérpreties do Brasil, quando pensavam sua formação no pós-Guerra, tendiam a enxergar seu momento como uma chance do país se integrar consigo mesmo e superar os traços coloniais que o rachavam internamente para que ele se vendesse para fora.


O momento decisivo estava no futuro, o presente era habitação de um sonho possível.

Por exemplo, Celso Furtado publica “Formação Econômica do Brasil” em 1959. Já em 1992, publica “Brasil: a construção interrompida”.


Antônio Cândido, por sua vez, escreve sobre um momento decisivo de nossa formação que já passou, século XIX, e que se constituiu com uma modernidade comprometida. Uma modernidade que combinou independência e escravidão, república e privilégio, unidade e exclusão.


E as ideias dele ajudam a interrogar a cultura a respeito do que os grupos que a movem estão empenhados em fazer com ela.


CÂNDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959).

CÂNDIDO, A. O romantismo no Brasil (2002).

CÂNDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios (1989).

CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade (1965).

CÂNDIDO, A. Literatura e Direitos Humanos (mimeo).

BAPTISTA, A. O cânone como formação: a teoria da literatura brasileira de Antônio Cândido (2005).

FRANCHETTI, P. Antônio Cândido: uma apresentação para estrangeiros (2006).

SCHWARZ, R. Os sete fôlegos de um livro (1999).


Daniel Costa é poeta.


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