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Convescote

Atualizado: 16 de mar.

Jamais esqueceremos. Jamais perdoaremos.

Por Bruno Zambelli

 

“Se Deus existe, ele fechou os olhos e tapou os ouvidos enquanto eu era torturado no Doi-Codi”


A frase que abre essa apresentação foi dita pelo mesmo homem. Um homem comum, um professor universitário, pai de um grande ex-amigo. Como perdi contato com o filho há anos, não sei como esse homem está agora. Provavelmente estará como sempre aparentou estar: normal. Não, provavelmente está aposentado atualmente, mas ainda deve apresentar o velho andar cansado, a voz retumbante e as olheiras que sempre foram sua marca.

 

Ele sempre foi assim. Quer dizer, quase sempre. Vez ou outra o bicho pegava, e foi seu filho quem me confidenciou isso, não ele próprio. Vez ou outra era foda: o peito apertava, as mãos suavam, o coração desafinava, a voz sumia. Vez ou outra o velho até tremia, chorava, sumia na sombra do quarto. Pânico, pavor, frescura... o que tentamos nomear, esse homem costuma chamar de lembrança.

 

Lembrança de ser brutalmente acordado de madrugada, na base da porrada, e ser carregado a força como um bicho abatido pelos corredores escuros de sua própria casa, tendo como música de fundo os gritos e soluços de sua família. Lembrança de um capuz preto e assustador como o próprio breu, do silêncio ensurdecedor daquele trajeto e dos freios anunciando o fim do caminho calmamente. Lembrança de um porão sujo, de fios desencapados, da certeza da morte. Lembrança que rói, que mata aos poucos, que adoece.

 

Ruy é um, apenas mais um dos tantos brasileiros que sofreram na pele a crueldade, os abusos e os crimes cometidos pelo Exército Brasileiro nos anos em que vivemos a odiosa, a abjeta ditadura militar. Sua história é só mais uma entre tantas outras. Histórias duras, revoltantes, de fazer o coração estraçalhar o peito exigindo não apenas reparação, mas vingança!

 

Ruy, apesar de tudo, sempre se considerou um cara de sorte. Muitos outros camaradas desapareceram e não tiveram apenas sua existência apagada, mas também suas histórias. Afinal, como no caso de toda covardia, e na ditadura militar brasileira não poderia ser diferente, os algozes tentam esconder seus crimes, mesmo que pra isso cometam uma centena de outros crimes. Como todo bom covarde, negam de pés juntos e mãos ensanguentadas as práticas vis e os atos de violência que praticavam vezes por obrigação e tantas outras vezes por puro sadismo. Bandidos.

 

A verdade é que até nos dias de hoje é preciso acima de tudo coragem para denunciar os crimes cometidos nos anos de chumbo da ditadura brasileira. Para gritar a plenos pulmões que os militares sequestraram, torturaram, estupraram e assassinaram centenas de pessoa é preciso muita, muita coragem. Felizmente, e digo isso por ter a sorte de cruzar com essa gente a todo momento; não faltam brasileiros de coragem para apontar o dedo na face do mal e dizer: não há perdão ou esquecimento!

 

Eduardo Reina é desses Brasileiros. Escritor, jornalista e pesquisador, Reina é autor de um dos livros mais impactantes e imprescindíveis dos últimos tempos. Cativeiro sem Fim: As Histórias dos Bebês, Crianças e Adolescentes Sequestrados pela Ditadura Militar no Brasil.

 

O livro narra o terrorismo de Estado cometido pelo Exército Brasileiro através de relatos de sequestros e desaparecimentos forçados de crianças e adolescentes, praticados por agentes da repressão aos movimentos de resistência à Ditadura.

 

Para a URRO!, é uma baita honra poder entrevistar Eduardo Reina em nossa edição comemorativa de aniversário, colaborando de alguma maneira para amplificar a sua voz e endossar o coro de suas denúncias, ainda mais nessa época, sessenta anos do golpe, em que muitos, por desinformação ou má-fé, insistem em negar o óbvio.

 

Jamais esqueceremos. Jamais perdoaremos.


Eduardo Reina investigou a ditadura militar | Foto: Márcio Schimming/Ponte Jornalismo

 

URRO! – Eduardo, conte-nos a respeito do processo de feitura do livro. Como nasce essa pesquisa, sobre um tema praticamente não comentado sobre esse período no Brasil e tão pouco pesquisado.

 

Eduardo Reina - Esse processo teve início muito tempo atrás. Na verdade, ele nasce da tentativa de responder a uma pergunta que sempre esteve na minha cabeça. É o seguinte: na América Latina, no período das ditaduras, as forças militares, as forças de repressão dos governos de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai agiam em conjunto. Um dos exemplos mais claros dessa união é a Operação Condor. Portanto, é evidente que o modo de ação dessas ditaduras é, se não idêntico, muito parecido, e a gente tem casos de sequestro de bebês e crianças de militantes políticos relacionados a todas essas ditaduras. Na Argentina, por exemplo, são mais de quinhentos casos.  E eu sempre me perguntava porque que no Brasil nunca falamos sobre isso. Então, na tentativa de responder a essa pergunta eu passei a pesquisar sobre esses sequestros cometidos pela ditadura militar brasileira que até então não eram se quer noticiados, imagine pesquisados. Só que a coisa andava muito devagar, era muito difícil encontrar uma vítima ou algum familiar de uma vítima que se dispusesse a falar, então o projeto não seguia adiante.

 

Em 2015 um amigo criou uma editora independente e me convidou para produzir um livro. Eu aceitei o convite e resolvi realizar um projeto que considero muito ousado, que é o de jogar luz nesse tema aqui no Brasil. Então eu criei um romance, Depois da Rua Tutoia, que conta a história de uma filha de militantes políticos que foi sequestrado e foi entregue pra um empresário que financiava a ditadura aqui em São Paulo. Eu considero o projeto ousado pois sempre acreditei, e isso que considero uma ousadia, que o romance poderia render frutos para a minha pesquisa, e isso deu certo, porque o livro foi lançado em abril de 2016 e dois meses depois de seu lançamento eu comecei a ser procurado por algumas pessoas.

 

A primeira pessoa que me procurou foi a filha de uma dessas vítimas. Ela entrou em contato comigo dizendo que a história do livro era muito parecida com a história de sua mãe e me pediu ajuda pra procurar os pais biológicos dela. Eu, claro, aceitei, e a partir daí, desse caso, tudo começou a andar. E a história dessa vítima é muito curiosa, pois ela foi adotada por uma família de militares que morava no Rio de Janeiro. O pai era um soldado, o avô, pai desse pai apropriador, era sargento, o irmão desse avô era General, o bisavô também General, o tataravô também era militar, então estamos falando de uma família inteira de militares. E o que me chama mais atenção nesse caso é que esse pai apropriador era motorista do ex-presidente da República, Ernesto Geisel. O nome dessa mulher é Rosângela, e ela é uma das vítimas que constam no livro Cativeiro Sem Fim.

 

URRO! – A maioria dos dezenove casos relatados no livro estão relacionados diretamente à Revolta do Araguaia. Conte um pouco sobre essa questão e como se deu essa descoberta de tantos casos.

 

Eduardo Reina - Isso um caso muito curioso. Em 2017 eu fui convidado a fazer o lançamento do livro na Federal de Belém do Pará e tive contato com pessoas do Araguaia, logo depois fui pessoalmente ao Araguaia, e lá tive contato com guerrilheiros, vítimas de sequestro, enfim, creio que estava no momento certo, no lugar certo ao lado das pessoas certas e os casos começaram a aparecer um atrás do outro, ou seja, esses crimes que estavam há mais de meio século escondidos foram aparecendo. Ou seja, o livro Cativeiro sem fim rompe uma barreira de silêncio, não é. Uma barreira de silêncio que foi imposta pelos militares sobre essas pessoas, essas histórias, e é muito importante divulgarmos esses casos, pois eles são apenas a ponta de um iceberg.

 

URRO! – Imagino que além de revoltante, é absolutamente doloroso realizar uma pesquisa desse tipo. Ao fim do processo você tomou quais providências para que as provas e os crimes que você descobriu fossem investigados?


Eduardo Reina - Quando eu fechei a pesquisa, a investigação desses 19 casos, reuni todo o material que produzimos: documentação, fotos, textos, enfim, tudo o que conseguimos levantar foi entregue no Ministério Público Federal para a Comissão de Mortos e Desaparecidos. E quero dizer que não fiz isso apenas por ser jornalista, pela ética do jornalismo, mas também e principalmente como cidadão. Por conta disso esses casos foram todos desmembrados e repassados às suas respectivas praças para andamento do processo, o que aconteceu até o início do governo de Jair Bolsonaro que paralisou toda investigação, evidentemente.


É importante dizer que desde o lançamento do livro eu já fui procurado por mais de cinquenta pessoas com histórias de vida parecidas com a dessas vítimas. É claro que nem todos os casos, e isso sabemos até por termos conhecimento dos padrões envolvidos nesses sequestros, serão confirmados, mas a verdade é que ainda há muito o que pesquisar e denunciar a esse respeito no Brasil. O trabalho é duro, é uma investigação jornalística e criminal, por assim dizer, então é um tipo de trabalho que não tem prazo pra terminar, mas o importante é demonstrar que a ditadura no Brasil foi cruel, torturou e sequestrou crianças e bebês de forma criminosa e escondeu seus crimes e tenta escondê-los até hoje.

 

URRO! – Eduardo, você tem esperança de que, como no caso da Argentina, um dia o Brasil faça Justiça e esses criminosos sejam devida mente punidos?

 

Eduardo Reina - Olha, é preciso ser rápido na apuração por diversos fatores, mas o principal é porque essas pessoas de certo modo têm uma espécie de tempo estabelecido, afinal pessoas morrem. Eu não acredito que esses criminosos serão punidos, mas acredito que é preciso contarmos a história dessas pessoas agora: os crimes que elas sofreram, o que passaram. É preciso denunciar agora, caso contrário as denúncias morrerão com essas pessoas, infelizmente. Acredito que precisamos correr contra o tempo para que possamos confirmar o máximo de casos possíveis e tentar fazer com que a justiça seja feita de alguma maneira, nem que essa justiça seja possibilitar o encontro dessas vítimas com seus pais biológicos. Nisso eu acredito.  




Bruno Zambelli é escritor, diretor teatral e ator.

 


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