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  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 22 de ago.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 23 de ago.

As notas que desafiam o conforto

Por Bruno Zambelli


Na noite campinense, um piano e uma voz se encontraram para abrir fendas no silêncio. Fabiana Lian e Vladimir Safatle trouxeram ao palco não apenas canções, mas também as inquietações de um tempo em crise.


Entre melodias de superfície e ecos de pensamento, o concerto soou como manifesto: música e política entrelaçadas, notas que desafiam o conforto, palavras que se recusam a se calar. No diálogo entre eles, a arte aparece como gesto de resistência — e cada acorde parece apontar para aquilo que insiste em nascer, mesmo quando o mundo tenta sufocar.

Foi a partir dessa experiência que a URRO! conversou com os dois artistas. Em entrevista exclusiva, eles falaram sobre música, política e sobre a apresentação em Campinas.


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Fabiana Lian e Vladimir Safatle: as inquietações musicais em tempos de crise


URRO! - No ano de 2024 a parceria de vocês completou 30 anos. No entanto, o primeiro álbum Músicas de Superfície foi lançado apenas em 2019, vinte cinco anos depois das primeiras gravações. Qual o motivo desse intervalo entre produção e lançamento e como esse tempo impactou no resultado final do álbum?


Fabiana – Nossa, é verdade, não havia percebido que já se passaram 30 anos. Interessante! Sabe, quando a gente se encontrou o Vladimir ainda era estudante de Filosofia, eu tinha uma carreira como cantora, mas o mundo era outro. O mundo era dominado por gravadoras, existiam os famosos porteiros da música. Que resolviam o que entrava e o que não entrava. E acredito que esse projeto tinha muita dificuldade naquele momento de ser compreendido. Me lembro que meus amigos de jazz, por exemplo, não entendiam muito, não acham muito bom; achavam esquisito. Acho que esse projeto não tinha muito ao certo uma prateleira onde ser colocado. As gravadoras não conseguiam encontrar uma gavetinha pra nos encaixar. Portanto não éramos um produto que os interessava. Depois disso acabei indo pro outro lado do balcão. Fiquei muito tempo sem cantar. E aí muita coisa aconteceu. O Vladimir se tornou quem ele é hoje; essa figura importante do pensamento mundial, eu também acabei sendo conhecida no mundo da música por outras atividades. A gente acabou se reencontrando em 2018, naquele Brasil, naquilo que estava se formando em 2018, e talvez o que tenha nos empurrado para voltar a falar sobre música e a fazer música, tenha sido esse sentimento de urgência. E a ideia, na verdade, quando a gente começou em 2019 era só fazer uns shows ali, meio que por diversão. Só que repercussão do público foi tão interessante; talvez até por ter se tornado quem a gente se tornou, com shows lotados. Então a partir desses primeiros shows decidimos compor o álbum.


Vladimir – Olha, o motivo desse intervalo entre a criação e o lançamento do primeiro álbum, Música de Superfície, eu poderia inventar milhões de coisas para justificar, mas o real motivo foi a nossa incompetência mesmo. Naquela época não existiam esses facilitadores, digamos assim, como o sistema de streaming. Era aquela coisa de gravar a obra e oferecer para as gravadoras. No entanto, a gente sentia que esse era um trabalho que não tinha muito claro o perfil dessa ou daquela gravadora. Não era um trabalho erudito, mas também não era algo popular. Estar no meio desse caminho dificultou muito as coisas para gente. Aí eu e Fabiana ficamos um tempo sem produzir ou realizar obras relacionadas à musica, mas quando nos reencontramos pensamos novamente nesse trabalho, em um novo tempo, e as questões que o dificultavam pareciam mais fáceis de serem resolvidas. A edição do trabalho principalmente. Então resolvemos retomar isso, começamos a fazer shows e estamos nessa até hoje, o que mostra que de fato essas músicas, essa obra, faz sentido para algumas pessoas e isso nos deixa muito feliz.

 

URRO! – As músicas de vocês são composições autorais para piano e voz, trabalhando a forma da canção a partir de referências híbridas, redimensionando as possibilidades expressivas das obras. Em algum momento vocês sofreram algum tipo de bloqueio, seja em relação à própria indústria fonográfica ou mesmo de alguma outra ordem?


Vladimir – De certa forma a primeira pergunta se encontra com a segunda também, não é? Porque, de fato, uma das coisas que mais paralisou a gente nesse projeto foi trabalhar nessa referência híbrida, nesse meio de campo, entre um trabalho meio erudito que também utiliza da forma canção como seu elemento principal. A nossa ideia era, à época, implodir a forma da canção por dentro, e isso envolve toda uma questão porque não é nem produzir trabalhos extenso para grandes formações ou trabalhos que tenham uma estrutura formal mais livre, menos tipificada com a forma canção. Por exemplo, as hierarquias, os acompanhamentos, não são acompanhamentos. A relação entre o piano e a voz é quase uma relação de igual para igual, como se fossem duas vozes iguais, no mesmo nível; tem uma série de elementos que funcionam de outra forma. Já as últimas que a gente compôs, algumas delas estão muito distantes da forma canção. Só tem essa estrutura de acompanhamento: piano e voz. Um exemplo claro seria a música feita em cima do poema da Silvia Plath. Mas eu diria que isso mostra a dificuldade que o campo da cultura tem em lidar com esse tipo de trabalho. Diria até que tem trabalhos, inclusive no Brasil, de pessoas que pegam essas formas mais tipificadas e explodem por dentro. Veja exemplo o Arrigo Barnabé que tem uma obra muito interessante nesse sentido, apesar de ser diferente do que a gente faz. Mas enfim, isso é para atentar para essa especificidade de um setor da produção musical, que devido a compartimentalização muito estrita da produção de música, acaba tendo os problemas que tivemos.

 

URRO! – Nessa primeira passagem por Campinas, vocês apresentarão o concerto Decomposição. Composto por oito músicas decompostas, o trabalho inaugura uma nova fase da dupla, dando continuidade e aprofundamento na subversão da expressão musical e nos limites da forma-canção. Como se dá o processo de composição, ou melhor, decomposição, das obras da dupla?


Fabiana - Para o Música de Superfície temos muitas referências. A gente tem coisas que nos unem, como Joy Division, o punk dos anos 80, mas tem muita coisa que a gente diverge também. Gosto de muita coisa da música brasileira, que o Vladimir, por exemplo, não gosta. E tem muitas coisas de música contemporânea que ele conhece e gosta profundamente e eu não me sinto próxima. Mas posso afirmar que o nosso ponto de encontro maior, de total convergência, seja esses anos 80 com o David Bowie, Joy Division, Ports Hair. O Vladimir vinha com uma linha de piano já completamente desenhada, que nos conduzia. Isso até hoje. Então a melodia é colocada em cima disso. Acho que o processo costuma ser mais ou menos esse. E volta e meia a gente se pega experimentando coisas de outras pessoas como Madredeus, tem uma música do João Bosco também. Então a gente tem experimentado simplesmente. (Risos)


Vladimir – Olha, o processo de composição nesse caso está se dando de duas formas. Uma é a gente pegar algumas canções, de diversas tradições, como uma canção do João Bosco ou do Madredeus, e ao invés de fazer uma versão de piano e voz a gente a transcreve por completo. Normalmente no processo eu preservo em larga medida os centros tonais da harmonia, mas quebro toda a estrutura de acompanhamento. Então, vou liberando o piano. Muitas vezes outras melodias são outras formas de dinâmica para música. Tem essa coisa de fazer reconstruções musicais em alguns casos e em outros a gente explora outros elementos da relação piano voz. Por exemplo: em uma das músicas o piano acaba funcionando como um sismógrafo que só acompanha a entonação da voz. Assim, não é apenas um acompanhamento no sentido de criar uma estrutura harmônica de base que permite a voz desenhar uma melodia. Na verdade, ele simplesmente reproduz a voz de uma certa maneira, ele sublinha em alguns elementos que aparecem na declamação. E tem outras músicas que a gente trabalha com outros blocos sonoros também.

 

URRO! Em 2024 vocês lançaram o single O Pastor do Madredeus. Contem-nos um pouco a respeito da obra.


Fabiana - Madredeus também entra dentro das nossas concordâncias. É uma música que sempre permeou muito a nossa vida. Foi muito importante fazer essa versão. Quando a gente começou a montar esse show pesquisamos o repertório e o Vlad veio com essa música. Foi muito interessante. Não sei se foi porque era uma música que já estava no nosso ouvido e fluiu de um jeito que foi tão rápido...  Ou porque sempre que construímos um repertório tem um tempo de maturação; você fica ensaiando algumas vezes até ficar bom, mas essa foi muito rápida e gosto de dizer que esse é aquele momento em que a música simplesmente vem, senta no meio da gente, e diz: ‘e aí gente, tem café?’ (Risos) E foi meio isso que aconteceu com essa música do Madredeus. Tem uma coisa que até tenho um pouquinho de orgulho, mas tentei me distanciar da Teresa Salgueiro, porque percebi que ela tem um timbre de voz bem parecido com o meu. Quer dizer, tenho um timbre de voz bem parecido com o dela. É claro que não estou me comparando, não chego aos pés dela. Maravilhosa, com um trabalho muito consistente. Mas quando comecei a ouvir, lembro que um dia estava ouvindo no carro e um dos meus filhos falou: ‘é você cantando?’. É mais desafiador, porque fazer uma música de outra pessoa, com um timbre de voz meio parecido, acaba imprimindo uma personalidade. Acho que o piano do Vladimir ajudou bastante, me inspira para achar uma assinatura nossa e ao mesmo tempo honrar o que Madredeus fez; o que essa cantora fabulosa fez.


Vladimir – Acho que estou respondendo às perguntas com antecedência. (Risos) O caso do pastor, desconsiderei toda dinâmica criada na versão original. Porém, havia um elemento importante: o ostinato rítmico, que aparece de maneira muito clara, dá uma pulsação muito bonita para a música. Essa mistura da pulsação regular e dessa voz muito melodiosa, que é própria da Teresa Salgueiro e que lembra muitas coisas da voz da Fabiana. Quis pegar essa dinâmica dos tinatos que marca uma pulsação forte, mas queria também quebrar com isso. Então em vários momentos a música se quebra enquanto a voz sustenta a coisa toda. Na realidade, queria inverter o processo. Em princípio parece que são os instrumentos que dão sustentação para voz no original. Ela pode dispor de toda essa mistura, dessa fragilidade do lirismo. Eu quis inverter: deixar o lirismo e a fragilidade como elementos que sustentam a música.

 

URRO! – Além da música, vocês possuem destaque e notoriedade em outras áreas em que atuam profissionalmente. Vladimir é filósofo e professor universitário. Fabiana é produtora artística, duas das áreas mais violentadas pelo governo do então presidente Jair Bolsonaro.  


Fabiana – Além da música, temos a nossa vida em áreas que foram muito atacadas. A gente até se encontra nesse momento, em 2018, naquela tentativa de virar voto ali com os professores e alunos da USP. É nesse momento que o Música de Superfície volta aos palcos. Um pouco por conta desse sentimento de urgência que aquele ano trouxe. Tipo, um Brasil indo ladeira baixo, então vamos fazer arte, sobreviver e tentar ter alguma saúde mental. Me lembro que no dia do lançamento a gente até brincou que devia dedicar o disco ao inominável porque, no fim das contas, foi por causa do que estava acontecendo naquele momento no país que surgiu esse trabalho.

 

Vladimir - Sobre o governo Bolsonaro diria o seguinte: nem sei se eu chamaria aquilo de desmonte, porque na verdade ele procurava trocar a base cultural do Brasil. Diria que foi uma guerra cultural no sentido mais forte do termo. Para a extrema direita, a cultura não é uma coisa a ser desprezada, muito pelo contrário, é um erro pensar dessa maneira. A cultura é fundamental, é central. Só que eles lutaam por uma outra cultura; e isso tem muito a ver com a história do fascismo brasileiro do qual o extrema direita Bolsonarista é uma fiel legatária. É uma filha direta do integralismo, movimento que visava a construção estética do povo brasileiro. Só que a questão era que estética era essa, que sensibilidade era essa. Então veja, a cultura para a extrema direita, é fundamental. É a cultura que vai, a sua maneira, legitimar todo o processo do extrativismo produtivista, devastador, do agronegócio etc. A música sertaneja é um tipo de cultura completamente adaptada aos setores mais fertilizados da Indústria Cultural. É uma batalha profunda que tem um elemento a seu favor. Veja, todo esse modelo, com Bolsonaro, Trump e companhia, saíram da comunicação de massa. A primeira vez que a gente viu o Bolsonaro foi em programas de humor da TV. Trump tinha um programa para ele, entendeu? Ou seja, são pessoas que estão completamente adaptadas, subjetividades completamente adaptadas, com atividades completamente adaptadas àquilo que seria o universo da Indústria Cultural com a suas estereotipias, com seu impacto, com a sua velocidade, com a sua dinâmica. O que eles fazem é mostrar, ou pelo menos trazem para si, para o seu horizonte, seu tipo de subjetividade. É uma subjetividade que já circula na nossa cultura. Eles não podem ser completamente contra a cultura. Eles são contra um certo tipo de cultura que traz um outro tipo de sensibilidade, que questiona, que traz uma noção própria da história oficial, esse tipo de coisa.


URRO! – Apesar da derrota nas últimas eleições, Jair Bolsonaro deixou uma espécie de herança maldita após seu governo. Ascensão da extrema-direita, conspirações militares, ataques sistemáticos a jornalistas são apenas alguns dos diversos exemplos que compõe essa “herança”. Para vocês, qual o papel da cultura, e da produção cultural, diante desse cenário?

 

Vladimir - Você tem razão falar dessa herança de Bolsonaro. Essa herança não só foi deixada como legado, como ainda está muito presente no nosso dia a dia, de uma maneira muito forte. Perceba que, quando a extrema direita entra no poder, ela mira em dois grupos imediatamente: a educação, através das escolas, universidade; e o campo artístico, as artes. Porque ela sabe de onde vem as mudanças na sociedade, sabe que as mudanças na sensibilidade também são mudanças na política. A arte é uma questão de como a sensibilidade circula e o que pode circular, como o que é visível pode ser visível e o que não é visível não o pode ser em condição alguma. Essas são questões fundamentais que interessaram imediatamente o campo político, porque produzem os limites ou as aberturas da imaginação social que depois vai resvalar no interior da criação da narrativa política.


 

Bruno Zambelli é escritor, diretor teatral e ator.

 

 

 

 

 

 

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