top of page
  • Foto do escritorURRO

Contratempo

O biquini de bolinha da Celeste - como descartar memórias?

Por Cecília Gomes


Eu tenho um biquíni cinquentão. E ele não está guardado, não. Tenho usado-o cada vez com mais gosto e admiração. Dupla face, um lado com estamparia de flores miudinhas, outro lado xadrez em vermelho e branco, permite a versatilidade que não encontro nas lojas e vitrines por aí.



Celeste comprou este biquíni quase ao acaso. Foi acompanhar seu marido na loja de fábrica de uma camisaria no São Bernardo, em Campinas, e lá estava ele na vitrine, junto com outros modelitos.


Da loja para casa, foram muitos mergulhos na piscina de sua residência, brincando com as crianças e sendo usado nos mergulhos e banhos de sol em viagens, incluindo o mar de Itapoã, no qual nadou sem saber que logo ali, naquelas águas, um pescador havia se afogado. Sentiu um odor estranho e o marido brincalhão dizia serem as algas. A confirmação veio horas depois, já na areia. O corpo havia sido encontrado entre as pedras, bem onde Celeste havia mergulhado.


Nem mesmo a experiência funesta foi suficiente para fazer com que o biquíni fosse abandonado. Ela o colocou na mala para seguir a viagem de retorno. Chegando ao aeroporto, a mala não estava entre as bagagens. Extraviou-se para Buenos Aires e - depois de uma semana - o biquíni chegava junto com a mala, tudo a salvo, à porta de sua casa.


Eu já sabia dessas histórias todas quando herdei-o e sempre gostei de usá-lo por ter pertencido à minha mãe e atravessar modas e ‘desmodas’, sendo o biquíni mais confortável e bonito que já usei. Tome caldo de onda do mar de ressaca, e a calcinha larga estava lá firme, sem revelar as nádegas.


Desde que me lembro por gente, conheço este biquíni. Então, é mesmo provável que ele já tivesse seus 10 anos de uso - e toda uma vida inteira de muitas águas pela frente - quando minha memória o capturou, junto com as fotos nos álbuns de família.


Escrever sobre o biquíni da Celeste é só um pretexto. Para além da qualidade do tecido que dura até hoje com um leve desbotado, o que este biquíni carrega são histórias de vidas. E, embora o termo storytelling esteja em voga nos dias atuais - sendo usado de maneira duvidosa por estrategistas de marketing - pouca história se preserva e se conta das coisas nesses tempos modernos e descartáveis.


A velocidade com que as propagandas de coisas novas aparecem diante de nossos olhos é inversamente proporcional ao tempo que necessitamos para ver, entender e compreender qualquer coisa, incluindo as nossas necessidades.


Foi depois de um mergulho nas águas de Extrema, em Minas - claro, com o biquíni da Celeste - que me veio o desejo de escrever este texto. Cinquenta anos depois, este biquíni continua sendo útil e justificando sua existência.


Que o tempo da reflexão possa existir e ser maior do que o tempo que passamos no “sumidouro” de vidas que são as redes sociais. Cinquenta anos é o tempo de uma vida madura, repleta de experiências, rugas, cicatrizes e histórias. É tempo que requer olhos, ouvidos e poros atentos e abertos. É preciso tempo para escutar, questionar, refletir, entender e, então, compreender.

Mas, há algumas décadas, fizemos o caminho da supressão do tempo, ignorando que a fatura sempre vem - com o tempo. É preciso ser ágil - fast food, self-service, pratos e talheres descartáveis, o tempo de um clique aqui. E cá estamos, desmemoriados em massa, produtores de conteúdos na era digital, mais preocupados com as técnicas que alimentam os motores de busca do Google do que com o que é essencial - oferecer informação para a formação de seres humanos - de fato - capazes de refletir e atuar para a transformação do mundo em que vivemos.


E tome uma dose de “Inteligência Artificial” - ou seria nossa dose de “Desmemória Natural” a serviço do Capital? Não sei dizer. Em princípio, ela é apenas uma ferramenta. Mas, ando apegada ao meu biquíni - o antigo biquíni da Celeste. Não sei se quero adentrar nesta “modernidade”. Será que quero ser obsoleta? Ou quero eu ser como o biquíni da Celeste? ‘Ser útil e justificar a minha existência?” Me pareceu um tanto patético para uma jornalista. Quero conservar aquilo que nos é útil e precioso: o conhecimento e a história de todas as coisas.


Ao inventarmos uma fábrica de inutilidades e informações digitais descartáveis, em escala e velocidade colossais, roubamos a capacidade de memória de nossas crianças, jovens, adultos e idosos. Por isso, ainda guardarei e usarei o biquíni da Celeste por um bom tempo. Sua história faz parte da minha. E vou cultivar o tempo de refletir e escrever textos inadequados aos motores de buscas e às trends e toda sorte de inutilidades criada para nos desviar daquilo que realmente somos: seres humanos dotados com a capacidade de reflexão.




Cecília Gomes é jornalista e atriz.

9 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page