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Contratempo

Escritas femininas de viagem: uma experiência comum

Por Thainã Cardinalli


Gosto de viagens, desventuras, trilhas e errâncias. Talvez seja por isso que escolhi desenvolver uma tese de doutorado sobre o relato de duas viajantes francesas. As personagens escolhidas para compor este percurso foram Adèle Toussaint-Samson (1826-1911) e Simone de Beauvoir (1908-1986): francesas, escritoras de romances e, principalmente, mulheres.


Por um fio (1976) - Anna Maria Maiolino


Quando comecei esta pesquisa, para mim, era estranho pensar que a escrita tinha gênero, que as palavras poderiam ter outros sentidos a depender de quem as pronunciasse ou escrevesse. Mas elas não somente continham outros sentidos, carregavam, igualmente, sentimentos, sensibilidades e sofrimentos. Adèle Toussaint-Sansom, por exemplo, me contava que a bordo do navio não podia sair de noite sem sofrer galanteios, que se ficasse lendo desacompanha no convés, estaria sujeita as importunações masculinas.


Lembro também de seu espanto com as mulheres brasileiras de classe abastada que não trabalhavam fora do lar, viviam confinadas, estagnadas nos afazeres domésticos, sendo tratadas como “bonecas” pelos seus maridos. Eles as presenteavam, as cobriam de joias e enfeites, mas essa mulher, dizia Adèle, “não é por ele associada nem aos seus negócios, nem às suas preocupações, nem aos seus pensamentos [...] não passa da primeira escrava da casa”.


Simone de Beauvoir, por sua vez, que viveu quase um século depois, lutou bravamente contra essas imposições colocadas às mulheres. Enfrentou isso através de sua afiada pena com personagens mulheres que foram esmagadas pela monotonia de suas rotinas e pelas dores amorosas; de sua ardilosa escrita filosófica com O Segundo Sexo; e de sua trajetória pessoal – a recusa do matrimônio, os casos amorosos vividos com mulheres e homens paralelamente ao seu envolvimento com Jean-Paul Sartre e a escolha por viver parte de sua vida em hotéis.


Pelas palavras de Beauvoir, temos um olhar crítico aos processos observados durante a sua viagem ao Brasil: país subdesenvolvido, de Terceiro-Mundo, repleto de pobrezas e misérias. Ainda que os termos empregados em suas descrições sejam comuns a um determinado contexto histórico, o pós-Guerra, os conflitos entre potências capitalistas e o bloco comunista e a descolonização das antigas colônias francesas; soam diferente quando escritas por Beauvoir. Não receberam o mesmo peso, potência, inscrição na historiografia, muito menos, foram colocadas como testemunho de um tempo histórico. Ao contrário disso, ganharam, apenas, o status de “escrita de mulher”.


O pejorativo termo francês, “bas-bleu”, cunhado no século 19 e atribuído às mulheres que ao ousarem pela carreira da escrita, portariam características masculinas; atravessou os espaços de convívio de Mme Toussaint-Samson tanto quanto foram usados para desqualificar o trabalho de Beauvoir. Impossível escrever e ser mulher; impossível que nossos textos sejam tomados como universais, uma vez que tudo o que produzimos é deslocado para o campo da margem, do incógnito, do subjetivo.


Enclausurar nossas palavras, nossos gritos, nossas subjetividades é uma forma de não ver, de fechar os olhos para o fato de que escorremos, viajamos, nos articulamos nas entrelinhas; que assim como vento, nossos escritos têm movimentos, se movimentam; que sussurram lentamente nos ouvidos daqueles que buscam se encontrar pelas palavras. A primeira língua que a criança escuta é o suss-urro da mãe, daquela que porta em seu próprio corpo as inscrições, violências e resistências: o grito feminino.

Busquei em Adèle e Simone, em autoras com trajetórias, vivências e temporalidades tão diversas, entender as negociações, dificuldades e potencialidades de uma escrita viática feminina. Esse é o tema, o percurso desafiador, a profunda viagem, a excursão para si que convoco os leitores a acompanhar comigo na tese intitulada, “Temporalidades, escrita e feminino: as narrativas viáticas de Adèle Toussaint-Samson e Simone de Beauvoir”.



Thainã Cardinalli é feminista, socióloga e doutora em História.

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