Contratempo
- URRO
- 18 de set. de 2020
- 2 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
A esperança é a penúltima saideira
Por Zé Gangorra

PÁ, PÁ, PÁ, PÁ, PÁ, PÁ, PÁ, PÁ, PÁ, PÁ...
O som das batidas nas mesas iam subindo conforme me aproximava do Morte Dura. O samba de mesa já começava a ser entreouvido:
MULATA BOSSA-NOVA
CAIU NO HULLY-GULLY
EEEE SÓ DA ELAAAAA
EIEIEI EIEIEI EIEI
NAAAAA PASSARELAAAAA...
O furdunço dentro do bar era intenso e só aumentava. Com os braços vacinados, as figuras iam aparecendo de todos os cantos, até dos cantos do além. Na mesa que puxava as marchinhas estavam os animados periodistas Henrique Dedalus, lendo seu jornal impassivo com uma das mãos e com a outra espancando a mesa sem dó em ritmo tético, para desespero da Tetê Cello, crítica musical que se aboletara na mesa ao lado, o fleumático Mário Esso de Queiroz, laureado editor do Esquerdão que viera de Sampa especialmente para ocasião, Asdroaldo Cardinópolis, o inventor do drink Teich (cloroquina, gelo e limão) e colaborador do Gazeta de Ontem murmurando: raaaapaaaz... ao observar a pândega ruidosa, e Bicho Cabeça-de-Poeta, barbadíssimo pela quarentena, de olhar esgazeado, com seu inseparável caderninho de esboços grávido de rimas.
Joel Cachacinha, o garçom metido a dar sustos não só ao trazer as contas, mal conseguia transitar em meio a balburdia tamanha a euforia da rapaziada. Zé Gangorra, com dois copos de Teich nas mãos filosofava: a lei da vida é a flutuação; para cada idéia, uma contra-idéia, para cada vontade, uma contra-vontade; ou a gente enlouquece ou desaparece...
ALALAÔ ÔÔÔ ÔÔÔ...
Diretamente do além, vieram Daniervas da Macaca com seu sorriso maquiavélico apalpando as convexidades das suburbanas, Vadinho Boca-de-Cachorro, cigarro em uma mão, Teich na outra, recitando o Cântico Negro de Zé Régio em cima do balcão e Paulo Amoral, com seu peculiar mal-humor fazendo todos gargalharem à tripa-forra.
SA SA SA RI CANDOOOOO...
Era o fim do estado de pavor paralítico, que por meses contivera a energia vital dessa gente que insiste em driblar a dor investindo na alegria, comumente vistas nas mesas de um boteco.
Os músicos começavam a chegar, Fabinho da Vila trazia em mãos sua paródia para o concurso.
Morena da quarentena
Tira essa máscara já
Vem ver
Que a vida ainda vale o sorriso que eu tenho prá te dar
O Corona foi-se embora
Prometendo não voltar
Bicho estranho e traiçoeiro, morena
Que tentou nos afastar
Todo mundo vai prá rua
Prá brindar e festejar
Vai ter muito abraço e beijo, morena
Te espero morena, veeeem!
Morena da quarentena...
O pessoal do Quarteto de Cordas Vocais Assintomáticas, com o sorriso estampado no peito, plugava novamente seus instrumentos para amplificar a ofegante euforia.
Era o fim de uma época diabolicamente sombria. O Deprimente da República morrera de overdose de si próprio e seu vice sucumbira à gripezinha muito pouco tempo antes de poder ter a força de seu braço armado pela vacina redentora. Novas eleições à vista, novos tempos se apresentavam para serem vividos intensamente sem o fantasma viral.
Quanto a mim, larguei a corporação e caí na diversão. Entrei por uma porta, saí por outra, quem quiser que conte outra.
AS ÁGUAS VÃO ROLAR...
Zé Gangorra é médico e cantor.
Foto: André Prada
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