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Veias Abertas

Silencioso. Aterrador. Tenebroso.

Por Mahmud Darwish, Samih Al Qassim, Ghassan Kanafani e Hiba Abu. Ilustração Heba Zagout


"Se morrermos, saibam que estamos satisfeitos e firmes, e digam ao mundo, em nosso nome, que somos pessoas justas, do lado da verdade”. Heba Abu Nada



Bilhete de Identidade

Mahmoud Darwish


Escreve

sou árabe

o número do meu bilhete de identidade é o

cinquenta mil

tenho oito filhos

e o nono chegará…

depois do verão

ficarás irritado?


Escreve

sou árabe

trabalho com os meus companheiros de infortúnio

numa pedreira

tenho oito filhos

para eles extraio da rocha

a carcaça do pão

a roupa e os cadernos

e não venho mendigar à tua porta

não me curvo

no átrio da tua casa

ficarás irritado?


Escreve

sou árabe

tenho um nome vulgar

sofro num país

que ferve de raiva

as minhas raízes…

fixadas antes do nascimento do tempo

antes da eclosão dos séculos

antes dos ciprestes e das oliveiras

antes da erva

o meu pai…

da família do arado

e não dos senhores de Nujub

o meu avô, um camponês

sem árvore genealógica

Ensinou-me os movimentos do sol

antes da leitura

a minha casa

uma cabana de guarda

feita de canos e ramos

Estás contente com a minha condição?

tenho um nome vulgar


Escreve

sou árabe

cabelos… pretos

olhos… castanhos

sinais particulares

na cabeça um ‘keffyah’ seguro por um cordel

a palma da minha mão, rugosa como a rocha

arranha a mão que aperta

o meu endereço: sou duma aldeia perdida, sem defesa

e todos os seus homens estão

no campo e na pedreira…

ficarás irritado?


Então


Escreve

ao alto da primeira página

eu não odeio os meus semelhantes

e não ataco ninguém

mas… se um dia me obrigarem a passar fome

comerei a carne do meu espoliador

fica atento… fica atento

à minha fome

e à minha cólera.



Declaração de Guerra

Samih Al Qassim


Gritarei

enquanto me restem algumas polegadas de terra

enquanto me reste uma oliveira

uma laranjeira

um poço… um bosquezinho de cactus

enquanto me restem lembranças

uma pequena biblioteca

a foto de um antepassado… um muro

enquanto restem em meu país palavras árabes

e cantos populares,

enquanto restem manuscritos de poemas

e os contos de Antar Al´Absi

as guerras do apelo nas comarcas de Roma e da Pérsia

enquanto me restem olhos

livros, mãos

enquanto me reste… alento

gritarei de frente ao inimigo

gritarei, declaração de guerra

em nome de homens livres

operários, estudantes, poetas

gritarei… e que os parasitas

e os inimigos do sol

se fartarem do pão da vergonha

enquanto me reste alento

e alento me restará

minha palavra será o pão e a alma

entre as mãos dos guerrilheiros.



Curiosidade de uma criança… Ou o destino de um homem?

Ghassan Kanafani


Meu filho… o futuro,

Ontem, no outro quarto, te ouvi perguntando a sua mãe:

- “Sou palestino também?”

Quando ela disse: - “Sim” -, um silêncio pesado tomou toda a casa, como se algo, suspenso sobre as nossas cabeças, tivesse caído…. uma explosão… e depois, o silêncio.

Não podia acreditar em meus ouvidos, mas acreditei em meus dedos. Eu estava lendo, quando senti o tremor refletir no livro em minhas mãos.

Não… foi tudo real, e em um nível alarmante… te ouvi você chorar!

Não podia me mover.

Algo fora de meu alcance estava acontecendo no outro quarto, enquanto você soluçava cheio de dúvidas.

Era como se uma lâmina abençoada estivesse abrindo seu peito, e lá colocando o coração que te pertencia.

Sua pergunta ainda ecoava sob o teto, reverberando o tremor de meus dedos:

- “Sou palestino também?”

Em seguida a lâmina golpeia, num movimento rápido e limpo, de um cirurgião hábil:

- “Sim!”… seguido de silêncio… como se nada tivesse acontecido, e então, te ouço chorar.

Não consegui me mover para ver o que estava acontecendo no outro quarto, mas eu sabia, no entanto, que uma pátria distante estava renascendo… terras de pradarias e campos de oliveiras… todos os mortos, as bandeiras rasgadas, e outras dobradas, trilhando caminho para um futuro de carne e sangue, para nascer no coração de uma criança.

Fui tomado pelo mesmo sentimento e dívidas, há cinco anos, quando você nasceu.

Eu estava em pé, esperando você emergir do alheio para o desconhecido, e senti, enquanto ouvia você chegar ao mundo chorando com lamentando, que estava repousando em meus ombros e me enraizando mais firmemente ao solo.

Aqui estou, no outro quarto, vendo você nascer de novo, sentindo você repousar em meus ombros novamente e me empurrando ainda mais profundamente na terra.

Neste momento desejei poder ver como, em seu rostinho abundante de inocência, estava sendo iniciada à tristeza… como que aquele - "Sim!”, tal qual ferro em brasa, erradicou a inocência da infância, enquanto inconsciente, você deslizava sobre as lâminas espalhadas a sua frente.

Você estava sendo criado naquele momento, diante dos olhos de sua mãe e meus dedos, que tremiam como as páginas do livro, como se alguém lhe empunhasse uma arma e dirigisse seus olhos para o gatilho.

Entre os dois quartos, através paredes, as veias da terra ramificaram-se, unindo-nos novamente. Não podia me mover, mas eu sabia, mesmo que vagamente, por que você, involuntariamente, chorou.

Acredito nesse desconhecido que é transmitido por palavras, mas que não é percebido por ninguém.

Você, sem saber, sentiu que essa palavra significou pertencer… e sofrimento.

Isso pode significar pra você, mais do que para mim, talvez a euforia de uma vitória.

Esses anos que me escaparam serão seus, e a esperança, dentro de mim, não vai murchar, mas será enviada para você, e adicionado a sua, e crescerá dentro de você.

Você, sem dúvida, sentiu isso; caso contrário, por que teria chorado?

Lembro-me - sentado no outro quarto, ouvindo você renascer através de seu choro - como eu também nasci de novo.

Eu tinha apenas dez anos, quando... carros nos transportavam para a vergonha da fuga.

Eu não sabia nada, então, não sentia nada.

Sem consciência, ainda desfrutando da inocência da infância, mas naquele momento, me deparei com uma cena que jamais esquecerei: os caminhões haviam parado; eu me desloquei para onde os homens estavam de pé, impulsionado, talvez, pela curiosidade de uma criança ou mesmo pelo destino de um homem.

Os vi, então, entregando suas armas no posto da fronteira, para entrássemos, no mundo dos refugiados, com as mãos limpas.

Voltei deprimido, sem compreender o que sentia. Minha mãe estava sentada com outras mulheres, e me aproximei dela, como se me fosse um refúgio, então, ela me perguntou:

- “Alguma coisa errada?”;

- “Eles estão entregando suas armas” -, eu disse a ela.

Da mesma forma que sua mãe disse "Sim”, para você, naquele dia minha mãe disse “Sim!” para mim.

O silêncio se abateu sobre nós, como se algo tivesse caído, e sob a intensidade de seu olhar, me vi chorando.

Naquele dia nasci novamente, estava olhando os homens, mais uma vez, com um olhar que eles não estavam acostumados a ver de mim, e minha mãe - sozinha - estava me olhando com um olhar que eu não estava acostumado a ver.

Não acredito que o homem cresce.

Não!

O homem nasce de repente: uma palavra, em um instante, penetra seu coração a dá-lhe um novo pulso.

Uma única cena pode te lançar da proteção inocente da infância, para a áspera estrada da vida.

Da mesma maneira que aquele “Sim!” me recriou, outro “Sim!” recriou você, e ouvi como você o aceitou, com gemidos de um homem que emerge de um desconhecido a outro, num fluxo rítmico impossível de controlar.

Se sua pergunta foi como a minha… a curiosidade de uma criança, ou o destino de um homem?

Não importa!

Nasceu, naquele instante, a antiga terra dentro de um novo homem… testemunhei esse nascimento do outro quarto… e senti que, aquelas veias, resistiram e se enraizaram por outros campos… por corpos sem fim.

E quando veio até mim, parecia emergir de si mesmo e uma voz em seu íntimo lhe falou… – “Siga!”

De início, isso te causou pânico… mas te colocou às portas do caminho de seu destino.”



Boa noite

Heba Abu


A noite na cidade é escura,

exceto pelo brilho dos mísseis.

Silenciosa,

exceto pelo som do bombardeio.

Aterradora,

exceto pela promessa lenitiva da oração.

Tenebrosa,

exceto pela luz dos mártires



Hiba Kamal Abu Nada foi uma poeta, romancista e nutricionista palestiniana. Em 2017, ganhou o 2º lugar do Prémio Sharjah de Criatividade Árabe, na sua 20ª edição. Foi morta durante um ataque aéreo perpetrado pela Força Aérea Israelita contra a sua casa. Tinha 32 anos.


Mahmud Darwish foi um poeta e escritor Palestino, nascido à época do Mandato Britânico. Nascido em um vilarejo, a 10,5 quilômetros de Acre, na Galileia. Durante a guerra de 1948, a família Darwish refugiou-se no Líbano, onde permaneceu por um ano, e, ao retornar clandestinamente e descobriu que o vilarejo havia sido substituído pelo colonato agrícola judaico de Ahihud.


Samīħ al-Qāsim al Kaissy foi um poeta palestino com cidadania israelense cujo trabalho é bem conhecido em todo o mundo árabe. Ele nasceu na Transjordânia e mais tarde viveu na Palestina Obrigatória e em Israel.


Ghassan Kanafani foi um escritor e ativista político palestino, cofundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Escreveu romances, peças de teatro, contos e ensaios políticos. Em 1972 foi assassinado pelo serviço secreto israelense.


Heba Zagout foi artista plástica palestina. Estudou artes plásticas na Universidade Al-Aqsa, de Gaza, e formou-se em design gráfico. Nas redes sociais, conquistou diversos seguidores com suas pinturas vibrantes de paisagens e palestinos. Morreu aos 39 anos, vítima dos ataques de Israel à Faixa de Gaza. Foi morta em 13 de outubro com dois filhos pequenos devido a um ataque aéreo.

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