Prelo
- URRO

- 18 de nov.
- 3 min de leitura
eu acendi o fósforo (Ofícios Terrestres)
Por Karen Kazue Kawana
dejà vu
não escrevo sobre amor
escrevo sobre saudades
amor no pretérito
fotos já sem cor
um tempo findo
quem se foi não volta mais
resta o luto da perda
quem se foi não se volta mais a ser
talvez isso seja uma vitória
não sei dizer
ainda estou a caminho
vindo de lugares onde estive
bebo café frio
vejo a chuva
casais adolescentes
déjà vu tépidos
pai e mãe estão mais velhos
deixei de ser a menina deles
uma mosca pousa na mesa
um cão passa e se volta
escrevo sobre saudades
mas este momento
não entrará na soma
voyeuse
noite em Lisboa
fado distante
luzes em colinas
poucas pessoas na rua
o ar dentro do quarto
não é o de minha casa
abro uma fresta da cortina
de costas para mim
sozinho e sentado
um homem se masturba
um objeto de estudo
de interesse antropológico
eu o vejo no escuro
com a curiosidade mórbida
de quem vê uma aranha
agarrar uma mosca
o embaraço de quem via Kuro
o cão de minha infância
montar as pernas de meu pai
na frente das visitas
no som de vozes próximas
abandonei meu posto
o desenlace dessa cena
ignoro
sem danos
seguimos nossos caminhos
completos estranhos
Do estado atual das coisas
Amanhã, a mesa não estará posta,
nada estará em seu lugar.
Porque há tarefas a cumprir,
e só desejamos chegar e dormir.
Nossos sonhos são comezinhos:
terminar o dia sem empecilhos,
um pedaço daquela torta gostosa,
outro gato, um produto da shopee.

Posfácio
Encaro a escrita de poesia como uma forma de me expressar e um exercício com um quê de lúdico, tentando não me levar muito a sério para não ficar frustrada. Afinal, vejo bastante gente boa escrevendo bem melhor do que eu por aí. E já me cobro o suficiente. Sou insegura e ansiosa o suficiente. Alguns poemas saem melhores. Outros, nem tanto. Mexo e remexo muito neles, alguns terminam no lixo assim mesmo.
Então por que um livro? Por gostar do objeto. De sua materialidade. E, como neste caso, por poder reunir algumas pessoas cujo trabalho acompanho: Nekotombo, criador da arte da capa — um sketch da minha mão —, Marilia Kubota, autora do texto da orelha, e Gabriel, editor da Ofícios Terrestres. É um pouco como voltar a ser criança. Ter uma ideia, me entusiasmar e procurar quem embarque nela comigo. Sou grata aos três. E a quem ajudou a divulgar e apoiou a campanha de publicação.
Escrevi estes poemas ao longo dos últimos dois ou três anos. O título original era “Coisas agridoces”, mas o Gabriel achou que “agridoce” não teria uma boa ressonância. Pensei um pouco e concordei. Por ter ascendência asiática, a palavra também poderia levar a associações indesejáveis neste nosso mundo torto. Enfim, no mexe e remexe dos poemas, fiz uma alteração num deles que levou ao título atual e foi o que ficou.
Karen Kazue Kawana é doutoranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp e autora das coletâneas de poemas Pequenas coisas (Bestiário) e eu acendi o fósforo (Ofícios Terrestres), da novela O homem do jardim (Urutau) e do pseudo-renga Cancioneiro da desilusão (Urutau). Traduziu obras de escritores japoneses como Osamu Dazai, Motojirô Kajii, Yuriko Miyamoto, Toshiko Tamura, entre outros. Faz parte do Coletivo Escritoras Asiáticas e Brasileiras e dos grupos de pesquisa Pensamento Japonês: Princípios e Desdobramentos (USP) e Mulherando (Unicamp).



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