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Prelo

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 23 de nov. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 3 de dez. de 2024

Nos palcos da vida

Por Kátia Fonseca


Eu não posso mudar o mundo

Mas eu balanço

Mas eu balanço

Mas eu balanço o mundo

Balanço só por balançar

Balanço às vezes por querer

Balanço só pra me amostrar

Balanço pra sobreviver

‘Balanceiro’ canção de Juliana Linhares, Khrystal, Moisés Marques e Sami Tarik



Meus dias em Campinas seguiam-se assim: muito trabalho, fisioterapia, teatro e bares, muitos bares, diariamente. Quando lembro, surpreendo-me com minha resistência física. Logo que fui morar com o João e com a Débora, o apartamento ficava no segundo andar de um pequeno prédio, no centro da cidade. Não tinha elevador. Eu descia e subia duas escadarias enormes, pelo menos, duas vezes por dia. É óbvio que, após alguns meses, meus joelhos reclamaram. Foi então que procurei a fisioterapia pela primeira vez. Descer as escadas não era tão difícil. E depois, na subida, geralmente eu estava bêbada, então não sentia a dificuldade.


Cerca de dois anos depois, mudamos para um prédio com elevador. Depois de um tempo – dois ou três anos – mudamos de novo, para outro prédio com elevador. E, depois de alguns meses, eu decidi morar sozinha. Aluguei uma quitinete. Isso causou algum estresse entre mim, Débora e João. Mas eu precisava ter meu espaço. Comecei a fazer muitos amigos que não eram comuns a eles. Não era justo eu encher o apartamento de pessoas estranhas aos dois.


Eu me enturmei com um grupo de teatro, dirigido por Adolfo Mazzarini, programador cultural do Sesc Campinas. Com ele, atuei em três espetáculos e fiz grandes amizades. Puruca – que, depois, me trouxe o Wal – é uma dessas amizades que ficam para a vida toda. Grande ator e grande amigo. Foi por meio de Adolfo que conheci o Teatro Delle Radici e acabei indo para a Suíça. Foi por meio dele também que tive uma das experiências teatrais mais profundas e viscerais, ao encenar ‘A Peste’, de Albert Camus, sob a direção de Cacá Carvalho. No final do espetáculo, eu me despia completamente. Eu estava junto com um jovem rapaz, também totalmente nu, tocando um saxofone. Nós caminhávamos lentamente pela cena, que estava na penumbra, e íamos saindo, aos poucos. Assim, finalizava a peça.


A apresentação do espetáculo foi impactante, tanto para o público, quanto para quem estava em cena. Porém, o processo para se chegar ao resultado final – os ensaios – foi o mais importante para mim. Cacá Carvalho é um grande mestre. Discípulo de Grotowski*, com aprendizado ocorrido direto na fonte, sob a direção de Roberto Bacci, no Instituto Grotowski, na Itália, o diretor e excepcional ator tirava o melhor e o pior de cada um do elenco, fazendo uma verdade “faxina” nas nossas emoções, trazendo à tona os sentimentos mais profundos, escondidos em nossa alma. Uma experiência que marcou minha trajetória teatral, entre antes e depois de Cacá Carvalho. Salve, mestre!


O espetáculo com Cacá foi em 1996. Anos depois, no início dos anos 2000, encenei ‘Lautrec’, sob a direção de Jozé Tonezzi – o querido Zezé. Mas, antes de Zezé assumir a direção, eu concebi, escrevi, criei cenário, iluminação e trilha sonora sozinha. Preparei uma pequena apresentação para levar à primeira edição do Fórum Social Mundial, que ocorreu em 2001, em Porto Alegre (RS). O resultado ficou meio capenga, amadora, mas passava o recado que eu desejava: contar a história de um artista marginal, ocorrida do final do século 19, fazendo um paralelo com a minha história, uma artista (guardando-se muito as proporções) marginal (aqui, sim, tal e qual) no início do século 21. E a peça trazia a triste constatação de que muito pouca coisa mudou em relação ao preconceito da sociedade.


Ao voltar do Fórum, resolvi investir no espetáculo e chamei Zezé para torná-lo mais profissional. O diretor, com toda sua generosidade e competência, fez um trabalho maravilhoso. Estreamos em ????, no Sesc-Campinas e foi um sucesso, não faltaram elogios.


A experiência de entrar no palco na pele de Toulouse-Lautrec até hoje me causa arrepios. Os segundos que eu ficava imóvel no palco, no início da peça, com a cena ainda na penumbra, eu pedia ao pintor que me ajudasse, que me inspirasse e que eu pudesse representá-lo à altura de sua genialidade. Sentia tremores, medo, frio na barriga, coração acelerado e, infalivelmente, todas as vezes me perguntava: o que estou fazendo aqui?; por que me meti nessa enrascada, eu não podia ficar quieta, em casa? Então, acontecia a mágica do teatro: as luzes iam se acendendo aos poucos, com uma suave música ao fundo, eu começava a me mexer e – voilà! – era Lautrec que entrava naquele palco. Não é como receber uma entidade do além, é algo consciente e presente, é a minha “porção Lautrec”, revelando, ao mesmo tempo, meu olhar sobre ele e o olhar dele sobre a minha vida. Difícil colocar em palavras experiência tão profunda.


Fazer teatro sempre foi isso para mim, uma experiência profunda de autoconhecimento. De quebra, permitiu que eu conhecesse grandes personalidades, seja através de seus textos – como Arrabal, Thecov, Gil Vicente, Antonin Artaud, Samuel Beckett, entre tantos outros - seja pelas próprias vidas, que é o caso de Lautrec.

Apresentei o espetáculo uma três ou quatro vezes em Campinas, uma vez em São Paulo, em Santos e Montevidéo (Uruguai). Também mostrei um trecho em Lugano (Suíça). Depois, como não é segredo para ninguém, a falta de apoio financeiro fez com que eu desistisse para poder correr atrás do pão de cada dia.


‘Lautrec’ foi minha última incursão pelo fazer teatral profissionalmente. Depois disse, tenho feito pequenos e tímidos voos, transitando entre a poesia e a música.


Capítulo da autobiografia de Katia Fonseca "Na medida do impossível", que está sendo lançada pela Livrearte Editora em dezembro em Campinas, São Paulo e Santos.

04/12/24 às 19h no SESC Campinas (R. Dom José I, 270 - Bonfim - Campinas)

05/12/24 às 19h - Livraria Ponta de Lança (R. Aureliano Coutinho, 26 - Vila Buarque - São Paulo)

10/12/24 às 19h - Realejo Livros (A. Mal Deodoro, 2  - Gonzaga - Santos)

Para comprar online: https://www.livrearte.com.br/



Katia Fonseca é pessoa com nanismo, jornalista, atriz e ativista em defesa dos direitos humanos. "Na medida do impossível" traz suas aventuras e desventuras durante seis décadas de existência. O livro é a comprovação de que a arte pode salvar vidas, mostra que a criatividade é uma força poderosa de transformação. Antes de qualquer coisa, o livro é instrumento de quebra de preconceitos, trazendo relatos íntimos e detalhados da trajetória de uma vida geralmente desconhecida da maioria das pessoas, com todas as suas dores e delícias. Nascida em Santos, Katia estabeleceu residência em Campinas a partir de 1991, trabalhando na grande imprensa e fazendo teatro, sempre ativista na defesa das pessoas com deficiência. Katia chacoalhou a cidade com sua ousadia, irreverência e competência jornalística.



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