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Palavrório

Atualizado: 5 de dez. de 2023

Ouroboros (Andando em círculos)


Por Paulo Reda


“O sentimento da esfera deve preexistir de alguma maneira ao ato de escrever o conto, como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que faz precisamente a perfeição da forma esférica”. “Do conto breve e seus arredores” – Julio Cortázar



20/06/2021


Toca andar!!!


Henrique olhou para o lado esquerdo, onde se via o busto cagado de pombos de um dos patriarcas da imprensa pátria. Conferiu o relógio, ajustou os fones de ouvido e começou a andar. Andar em círculos. Costumava fazer caminhadas no bosque que avistava da janela do apartamento, mas com o recrudescimento da peste o lugar foi fechado pelas autoridades. Só lhe restava a praça, onde famílias passeavam com crianças e cachorros. Não gostava de famílias, crianças e cachorros. Sentia saudade das cotias do bosque, que sempre desviavam à sua passagem. As famílias, crianças e cachorros não: saracoteavam na sua frente e, às vezes, cometiam até a desfaçatez de tocá-lo!!! Cotias são bem mais inteligentes e gentis que famílias, crianças e cachorros. “Va´m borandá, que a terra já secou, borandá”


Criou um playlist chamada “Andando em Círculos” como trilha sonora das caminhadas tediosas pela praça. Aquilo não era como o Caminho de Swann e o Caminho de Guermantes, que pareciam tomar rumos distintos e mais a frente se encontravam. Alí era andar em círculos. Com a volta da pandemia, sua mulher o proibiu de visitá-la, taxando-o de irresponsável sanitário. Na semana seguinte ela e a filha contraíram a peste e ele continuava incólume. “Só tenho medo da falseta mas adoro a Julieta, como adoro, a Papai do Céu, quero seu amor, minha santinha, mas só não quero que me faça de bolinha de papel”.

Hoje era seu aniversário. 55 anos. Idade palindrômica. Idade circular. Antes de sair de casa consultou o google para pesquisar o significado do número 55. “Quando o número 55 aparece, nada permanecerá como está por muito tempo”. Será que isso é bom ou ruim? Descobriu ainda que existe um pretenso anjo número 55. Jamais imaginou que as entidades celestiais fossem classificadas dessa forma. “O anjo número 55 quer que você esteja ansioso pelo futuro”. No future, dear angel! Só havia um indistinto passado. Sobre o presente, há controvérsias... Ou, como escreveu certa vez Paulo Mendes Campos: “Bebo, no duro, pra esquecer o futuro”. “Se eu for pensar muito na vida, morro cedo, amor, meu peito é forte, nele tenho acumulado tanta dor. As rugas fizeram residência no meu rosto, não choro pra ninguém me ver sofrer de desgosto”.


No teatro de arena abandonado, pregadores se esgoelavam. A peste era um castigo pelo comportamento errático dos homens sem fé, como ele. Em alguma noite indistinta nos anos 90 vaticinara o fim das religiões. “Como a filatelia e o esperanto, em alguns anos restarão apenas poucos adeptos excêntricos”. Após tamanho engano, resolveu se conformar com o papel seguro de profeta do passado. “Circuladô de fulô ao deus ao demodará. Que deus te guie porque eu não posso guia”.


Uma moça caminhava a sua frente com roupas de ginástica. Aquela calça deixava qualquer bunda bonita. Henrique logo desviou os olhos, com receio de ser enquadrado na nova Lei de Assédio Visual, decretada pelo recém-criado Ministério das Boas Maneiras. Mas ainda conseguiu reparar que nas costas da mulher havia um tatuagem. A imagem de uma cobra que engolia o próprio rabo. Puxando pela memória, lembrou o nome que se dava àquela figura mitológica: Ouroboro. Pensou em puxar papo sobre o significado da tatuagem, mas desistiu ao lembrar que as punições a esse tipo de procedimento eram ainda mais rígidas do que para o assédio visual. “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem”.


Cada volta na pista de caminhada do Bosque tinha 1213 passos. Levava cerca de 11 minutos para completar o trajeto. Na praça, o percurso circular durava seis minutos, 671 passos. Costumava repeti-lo sete vezes, 35 minutos, antes de retomar sua modorrenta rotina, mas naquele dia, absorto em pensamentos, perdeu a noção da hora. O tempo é incômodo. Em certo momento lhe pareceu que escurecia, achou que era uma nuvem a tapar o sol. Não se via mais as crianças e cachorros: estava rodeado por estranhas criaturas andrajosas que carregavam garrafas de vinho barato em sacos de papel. Olhou para cima e viu a lua, inspiração eterna dos poetastros. “A lua, quando ela roda, é nova, crescente ou meia lua, é cheia, e quando ela roda, minguante e meia, depois é lua novamente”.


A chuva molhava seu rosto e empapava as roupas, já ensopadas também de suor. Henrique olhou para seu lado esquerdo e notou chocado que o teatro que lá existia fora demolido. Em seu lugar, havia um amplo acampamento com barracas onde se acotovelam dezenas de famílias pobres. Destituídos da peste. Criaturas que aguardavam no limbo para descobrir a qual círculo do Inferno seriam destinadas. Alguns policiais, com expressões entre raivosa e assustada, tentavam manter a ralé em seu lugar. “Alagados, em Trenchtown, favela da Maré, a esperança não vem do mar, vem das antenas de tv”.


Completar a volta na praça parecia cada vez mais difícil. Os seis minutos passavam a sete, oito...Percebeu que as solas de seu tênis haviam ficado pelo caminho, sentia o chão quente a lhe queimar os pés. Seus braços se tornaram flácidos, as pernas finas e inseguras. Uma enorme barba desgrenhada se espalhava sobre seu peito. “Sou feio, desidratado e infiel, bolinha de papel, que nunca vou ser réu dormindo, e descobri como um velho bandido, que já tudo está perdido neste céu de zinco”.


A horda de miseráveis se adensava. Vários deles saiam do supermercado recém-incendiado carregados de comida, bebida e eletrodomésticos. Com as árvores da praça, que haviam cortado, faziam enormes fogueiras onde cozinhavam os alimentos e se embriagavam. Henrique contemplava com horror por trás das chamas e da fumaça os rostos famélicos e desvairados. De repente, na minha frente, a esquadria de alumínio caiu, junto com o vidro fumê, o que fazer, tudo ruiu, começou tudo a carcomer, gritei, ninguém ouviu, olha que eu ainda fiz Psiu”.


Decidiu ir para casa. Que casa? Não havia para onde retornar. Não era mais possível deixar de andar em círculos. Em que momento aquela brincadeira, aquela bobagem, se tornara séria? Ele não podia parar. Havia coberto uma distância que lhe tornara impossível voltar atrás. Afastou o suor que encobria seus olhos e, ao passar pela única árvore da praça que sobrevivera ao ímpeto destruidor da multidão, viu a enorme boca aberta de Ouroboro, que havia largado a cauda e agora se estendia à frente como a única pista de caminhada possível. Va´m borandá, que a terra já secou, borandá”. A playlist circular também reiniciava seu ciclo. Toca andar!!!


Playlist Andando em Círculos*

Borandá (Edu Lobo) – Álbum Tempo/Tamba Trio

Bolinha de Papel (Geraldo Pereira) – Álbum João Gilberto/João Gilberto

Rugas (Nelson Cavaquinho) – Álbum Nelson Cavaquinho 1973/Nelson Cavaquinho

Circuladô de Fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos) – Álbum Circuladô/Caetano Veloso

Tatuagem (Chico Buarque/Ruy Guerra – Álbum Falso Brilhante/Elis Regina

A Lua (Renato Rocha) – Álbum Vira Virou/MPB4

Alagados (Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone) – Álbum Selvagem?/Paralamas do Sucesso

Velho Bandido (Sérgio Sampaio) – Álbum Tem que Acontecer/Sérgio Sampaio

Nostradamus (Eduardo Dusek) – Álbum Olhar Brasileiro/Eduardo Dusek


Paulo Redaé jornalista, com passagens por diversos veículos de comunicação. Crítico literário, musical, cronista e poeta bissexto. Diretor do bloco carnavalesco Nem Sangue Nem Areia.








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