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Palavrório

Atualizado: 15 de mar. de 2023

O Manuscrito

Por Paulo Reda


“Na cabeça idealizara uma trilogia, “A Espanhola”, em torno da gripe que dizimara o Rio em 1918 e transformara o Carnaval de 1919 na maior explosão de alegria e safadeza da cidade” – Álvaro Marechal: “Viagem em torno de Mário Filho”.



Quarta-feira (2 de setembro) – Quase seis meses depois do início da peste, Henrique entrava em um de seus lugares favoritos: a Livraria Ágora. Durante o período de confinamento, o sebo manteve vendas pela internet, mas ele não se habituara à prática de comprar livros apenas por fotos e descrições (muitas vezes mentirosas) dos sites de venda online. Precisava vê-los, folheá-los, cheirá-los...


Os donos o cumprimentaram como se aquele período tenebroso não tivesse acontecido. Melhor assim. Se pôs a explorar as infinitas prateleiras. Mais de uma hora naquilo, havia escolhido quatro livros (Um Cara Bacana na 19ª, de Aldir Blanc, Lado B, do Sérgio Augusto, Os Ares do Mundo, de Celso Furtado, e uma edição de duas novelas de Friedrich Dürrenmatt, A Promessa/A Pane).


Passou algum tempo sentado num canto lendo a introdução (epa!!! opa!!!) do Ivan Lessa para a coletânea do Aldir. “Quando eu era garoto, e achava que um dia, talvez, pudesse ir e escrever umas coisinhas, nunca me preocupei muito com o que dizer. Minha cisma era o som da coisa, a embocadura. Eu queria escrever como o Jorge Veiga cantava e brecava.

O Caricaturista do Samba foi minha única influência literária. Impressionei mais de um subliterato paulista com essa conversa”. Henrique queria cantar e brecar como Ivan Lessa. Como o Edélsio Tavares, que respondia as cartas inventadas no Pasquim.


Para um sebo, o Ágora era muito bem organizado. Mas sempre haviam caixas empoeiradas nos cantos, que quase nenhum cliente se animava a vasculhar. Em uma delas, viu o que parecia ser um grosso manuscrito, bem maltratado, com as folhas presas por barbante.


Limpou superficialmente a poeira da primeira página, quase devolveu o calhamaço à caixa, mas bateu sem querer os olhos no que parecia ser seu título: “A Espanhola”. “Isso aí chegou ontem da Livraria Carambola, lá do Rio, ainda não tive tempo de ver o que é”, disse Jean, o dono do Ágora. “E esse manuscrito, quanto custa”, perguntou Henrique. Nada. Pode levar. Íamos jogar fora. Levou.


Terça, quarta, quinta e sexta-feira (8, 9 10 e 11 de setembro) - Só voltou a se interessar pelo manuscrito seis dias depois. Quase havia esquecido sua existência, mas certo dia entrou no escritório e tropeçou naquela pilha de papéis velhos.


Antes de manuseá-lo, assoprou a poeira da borda das páginas. Depois usou uma escova de dentes para remover as camadas mais persistentes de sujeira. Apesar dos buracos de traça, das manchas de mofo e umidade e da tinta parcialmente apagada, o volume ainda estava razoavelmente legível.


Pelo título, imaginou ser alguma história rocambolesca sobre uma caliente dançarina espanhola de castanholas envolvida em tórridos casos de amor com toureiros. Mas quando começou a ler percebeu que não era nada daquilo. O termo “Espanhola” referia-se à gripe espanhola. Estranha coincidência! Ficou ainda mais intrigado quando, logo abaixo do título, decifrou o nome de seu pretenso autor: Mário Filho.


Nunca ouvira falar que o irmão mais velho de Nelson Rodrigues, o homem que inventou o Fla-Flu e o desfile das escolas de samba, autor de uma obra fundamental como o Negro no Futebol Brasileiro, escrevera algo sobre a gripe espanhola.


Uma rápida pesquisa pela internet revelou que ao morrer em 1966, aos 58 anos, Mário Filho falava sobre o desejo de publicar um livro sobre o impacto que, não apenas a gripe espanhola, mas o libidinoso Carnaval de 1919, tiveram sobre sua imaginação de menino. Passou os três dias seguintes imerso no inusitado manuscrito, que estava dividido em três partes, cada uma delas com mais ou menos 200 páginas: Belle Époque, Peste e Carnaval.


Na quinta-feira à noite, ao encerrar a leitura, chegara a uma inquestionável conclusão: aquele era o melhor livro de literatura brasileira que já lera na vida. As descrições das ruas e dos personagens do Rio nos anos de 1916 e 1917, a contundência e compaixão do relato sobre a gripe espanhola e, especialmente, o volume destinado ao Carnaval de 1919, que fazia Rabelais e Boccaccio parecerem meninos de colégios de padres, não poderiam permanecer inéditos.


Tentou dormir, mas a cabeça estava um turbilhão. No dia seguinte cedo precisava sair para trabalhar, comprar comida, ficou três dias sem colocar o nariz pra fora... Mas assim que voltasse planejaria o destino que daria àquela obra-prima. Quem poderia escrever a orelha do livro? João do Rio, talvez, se ressuscitasse.


Na sexta-feira de manhã, insone e excitado, Henrique saiu de casa disposto a voltar o mais rápido possível para a única coisa que o interessava naquele momento: dar “A Espanhola” sua merecida glória pública.


Por volta de 16h, quando chegou em casa, teve um estranho pressentimento. Sentiu no ar o cheiro de limpeza. Um arrepio lhe percorreu o corpo. Entrou na cozinha e viu o bilhete grudado na porta da geladeira: “Seu Henrique, boa tarde. Tava bem sujo aqui, fiz uma faxina reforçada. Tinha um monte de papel velho lá no escritório, joguei tudo fora. Dita”. Desesperado, ainda teve tempo de alcançar a janela e ver o caminhão de lixo dobrar a esquina.


Paulo Reda é jornalista, com passagens por diversos veículos de comunicação. Crítico literário, musical, cronista e poeta bissexto. Diretor do bloco carnavalesco Nem Sangue Nem Areia.




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