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Tensão sobre o Tom

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    URRO
  • 1 de jun. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 23 de jun. de 2022

Construção, disco clássico de Chico Buarque, completa 50 anos em meio a um Brasil em ruínas.

Por Maurício Simionato


“Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir / Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir / E pelo grito demente que nos ajuda a fugir / Deus lhe pague (...)”.


Essa terceira estrofe da música Deus lhe Pague traz a carga de atualidade do álbum Construção, de Chico Buarque, um disco fundamental para a história da música brasileira que completa 50 anos de lançamento neste ano de 2021. O LP foi lançado em 1971, em meio a uma das fases mais pesadas e sombrias da Ditadura brasileira, que vigorou entre 1964 e 1985.


Meio século depois, o Brasil segue em construção. Um país em ruínas. Nos braços da necropolítica. Neste sentido, a obra de arte é profética. O álbum dialoga com a atualidade como toda grande obra de arte. Tornou-se essencial para entender um contexto desse Brasil de hoje, inserido em uma pós-modernidade sofrível e miserável do ponto de vista social, político, educacional, econômico e ambiental.


A música Deus lhe Pague é uma crítica ao controle dos militares e à opressão sofrida no país. Esse é outro ponto de contato com esse país de hoje, assombrado por militares e suas “viúvas”, saudosos do golpe militar de 1964 e sedentos para impor novas censuras às cabeças pensantes.


A música foi inicialmente vetada por parecer um 'recado' com duplicidade de sentido, que tanto pode ser dirigido a alguém ou algo abstrato. Posteriormente, a música foi liberada sem modificações, após articulações dos advogados da gravadora Phillips em Brasília.


Construção teve uma criação que esteve condicionada ao país em que eu vivi. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto, e eu nem acho que eu faça música de protesto, mas existem músicas que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país.

Chico tinha 27 anos quando lançou o disco. Havia passado 14 meses exilado na Itália e retornou mais maduro para enfrentar o desafio de confrontar com a sua arte a censura do regime militar.


Construção reúne samba, bossa nova, tropicalismo e poesia numa obra magistral marcada pela arquitetura das letras com mensagens e duplo sentido que torceram os miolos engessados dos generais e dos homens que cuidavam do serviço de censura.

Ao mesmo tempo triste e ensolarado, o disco traz um aspecto cruel desse Brasil eternamente cheio de esperanças por um futuro com mais liberdade. Um disco revolucionário com doses de ousadia estética com os arranjos afiados do maestro Rogério Duprat (1932-2006), que esteve com a Tropicália desde o início, e do músico Antônio José Waghabi Filho (1943 – 2012), o Magro do grupo MPB4 (grupo de participa intensamente do disco).


A construção poética da música-título é notória. É cortante:

“Amou daquela vez como se fosse a última/ Beijou sua mulher como se fosse a última / E cada filho seu como se fosse o único / E atravessou a rua com seu passo tímido”

A música é escrita em versos alexandrinos, que são versos de 12 sílabas poéticas em que a 6ª e a 12ª sílabas são tônicas. Todos os versos alexandrinos terminam com uma palavra proparoxítona e a 12ª sílaba tônica é sempre a 1ª sílaba dessa palavra.

“Sentou pra descansar como se fosse sábado / Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe / Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago / Dançou e gargalhou como se ouvisse música”.


O repertório irretocável apresenta ainda músicas como Valsinha (parceria do compositor com Vinicius de Moraes) e o samba Cotidiano, evidenciando a maturidade artística do jovem Chico.


Em Valsinha, Chico convenceu Vinícius de Moraes a abandonar o nome "valsa hippie". A troca de cartas entre os dois mostra que Chico, ainda que muito mais jovem, fez alterações significativas na letra do poeta. "Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão", escreveu Chico na ocasião, em tom de brincadeira.


Além de Duprat e de Magro (1943-2012), participam também de Construção o maestro Tom Jobim, em um momento de afirmação nas parcerias musicais entre o jovem compositor e um dos principais expoentes da Bossa Nova.


Em uma entrevista a Geraldo Leite, na Rádio Eldorado, em 1989, Chico explicou o contexto para a elaboração da obra.


"Construção teve uma criação que esteve condicionada ao país em que eu vivi. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto, e eu nem acho que eu faça música de protesto, mas existem músicas que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país. Até o disco da samambaia (Chico Buarque, 1978), que já é o disco que respira, o disco onde as músicas censuradas aparecem de novo. Enfim, a luta contra a censura, pela liberdade de expressão, está muito presente nesses cinco discos dos anos 1970."


Entre as canções que estão em Construção que enfrentaram problemas com a censura está a música Cordão. No sistema de informação do Arquivo Nacional, que armazena documentos do regime militar no Brasil, é possível encontrar alguns vetos. A censura identificou um "protesto contra a ordem vigente" e alegou que o verso "Nas grades do coração" tinha "sentido dúbio". Chico substituiu o verso por "As portas do coração".

“Ninguém / Ninguém vai me segurar / Ninguém há de me fechar/ As portas do coração /Ninguém / Ninguém vai me sujeitar / A trancar no peito a minha paixão / Eu não / Eu não vou desesperar / Eu não vou renunciar / Fugir / Ninguém / Ninguém vai me acorrentar /Enquanto eu puder cantar / Enquanto eu puder sorrir (...)”.


Cotidiano, outro clássico do LP, tem a rotina conjugal marcada pelos rituais envolvendo a boca em um jogo de palavras simples e lírico: "E me beija com a boca de hortelã(...)/e me beija com a boca de café(...)/e me calo com a boca de feijão".


Outro clássico, Samba de Orly, foi feita com Toquinho e Vinícius. Apesar de incluído na tríade, os versos de Vinícius, adicionados quando a letra já estava praticamente pronta, foram censurados. "Pela omissão" deu lugar a "Pela duração". "Um tanto forçada" foi substituída por "Dessa temporada".


"Vinícius teve a letra tesourada, mas ganhou a parceria eterna", disse à BBC Brasil Wagner Homem, autor do livro História das Canções, sobre a obra de Chico.


Samba de Orly

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Vai, meu irmão

Pega esse avião

Você tem razão

De correr assim desse frio

Mas beija o meu Rio de Janeiro

Antes que um aventureiro

Lance mão

Pede perdão

Pela duração

Dessa temporada

Mas não diga nada

Que me viu chorando

E pros da pesada

Diz que vou levando

Vê como é que anda

Aquela vida à toa

E se puder, me manda

Uma notícia boa

Pede perdão

Pela omissão

Um tanto forçada

Mas não diga nada

Que me viu chorando

E pros da pesada

Diz que eu vou levando

Vê como é que anda

Aquela vida à toa

Se puder me manda

Uma notícia boa.

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