Tensão sobre o tom
- URRO
- 16 de ago. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 28 de ago. de 2024
Chico Buarque: o terror dos idiotas
Por Mauricio Simionato
Não chega a ser surpresa e nem um paradoxo que um dos maiores artistas do Brasil tenha se tornado tão odiado, principalmente nos últimos 15 anos, por uma legião de néscios com alto grau de desinteligência e doses bovinas de amargura.
Compositor e escritor traduzido para dezenas de países, Chico recebeu em 2019, o Prêmio Camões de Literatura, em Portugal, o maior reconhecimento a uma artista de língua portuguesa. Ironicamente, seu sucesso, seu reconhecimento e seu bom-humor, fizeram com que esse ódio a ele se multiplicasse ainda mais.
Na ocasião, o prêmio só poderia ser entregue ao agraciado se o diploma fosse assinado pelo então presidente do Brasil em exercício (hoje inelegível e indiciado), o que não ocorreu. Ao receber o prêmio, em Lisboa, Chico Buarque usou o talento com as palavras para ironizar a situação e se solidarizar com os colegas artistas:
"No que se refere ao meu país, quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade. Hoje, porém, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo à tantos autores e artistas brasileiros humilhados, ofendidos nestes últimos anos de estupidez e obscurantismo [1º de jan. de 2019 – 31 de dez. de 2022]".

As críticas de ódio a Chico chegam a ser hilárias, se não fossem trágicas e indicassem, em parte, o vazio cultural e educacional de um punhado de mentes capturadas pela extrema-direita brasileira, resultantes de um misto de lavagem cerebral que inclui discursos que misturam enganação religiosa, racismo, extremismo, autoritarismo, truculência e armamentismo. O suprassumo do falso moralismo. Tem nesse meio, gente que até hoje nega a existência da Ditadura no Brasil, por exemplo. A mesma ditadura que, aliás, censurou diversas de suas letras.
Chico é o compositor mais regravado da história da música brasileira. Algumas de suas letras são memoráveis e de inegável beleza poética. Porém, diferentemente do senso comum, sua música mais regravada nos últimos cinco anos não foram sucessos como “O Que Será”, “Construção”, “Apesar de Você” ou “A Banda”.
Segundo um levantamento do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), o posto é de “Gente Humilde”, escrita em parceria com Vinicius de Moraes e Garoto. Na sequência, vem “Retrato em Branco e Preto” (Tom Jobim/Chico Buarque), “Beatriz” (Chico Buarque/Edu Lobo) e “Anos Dourados” (Tom Jobim/Chico Buarque).
De fato, parte dessa “ira”, catalisada pela elite retrógrada e brega brasileira, faz sentido ao analisarmos que suas letras retratam a vida simples, dura e singela do povo brasileiro, como em “Gente Humilde”. E quando o povo se destaca, a elite fica com inveja:
“Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar (...)”
Ou na clássica “Construção”:
“...Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague”.
Ou na letra certeira contra o regime militar, “Apesar de Você”, que foi relembrada por muitos brasileiros nas últimas eleições presidenciais:
“(..) Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença (...)”
São tantas as letras de imensa beleza poética, que a URRO! selecionou alguns dos versos mais belos de suas músicas. Confira abaixo.
E viva Chico!
Apesar de Você
1. Apesar de você, amanhã há de ser outro dia
2. Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar
3. Quando chegar o momento, esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juro
Até Pensei
4. A felicidade morava tão vizinha que, de tolo, até pensei que fosse minha
Cálice
5. Quero inventar o meu próprio pecado, quero morrer do meu próprio veneno
6. Quero lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado
João e Maria
7. E pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz
8. Pois você sumiu no mundo sem me avisar e agora eu era um louco a perguntar: o que é que a vida vai fazer de mim?
Fica
9. Quem sabe um dia, por descuido ou poesia, você goste de ficar?
10. Diga ao primeiro que passa que eu sou da cachaça, mais do que do amor
O Meu Amor
11. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz
Roda Viva
12. Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu?
13. O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração
Ela É Dançarina
14. O nosso amor é tão bom… O horário é que nunca combina
Bom Conselho
15. Está provado, quem espera nunca alcança
16. Ouça um bom conselho, que eu lhe dou de graça: inútil dormir que a dor não passa
Beatriz
17. Para sempre é sempre por um triz
Desencanto
18. Eu canto a dor que eu não soube chorar
História de Uma Gata
19. Nós, gatos, já nascemos pobres. Porém, já nascemos livres
Ela Faz Cinema
20. Talvez nem me queira bem, porém, faz um bem que ninguém me faz
O Que Será (À Flor da Pele)
21. E uma aflição medonha me faz implorar o que não tem vergonha, nem nunca terá. O que não tem governo, nem nunca terá. O que não tem juízo
22. O que será, que será? Que dá dentro da gente e que não devia? Que desacata a gente, que é revelia?
Cotidiano
23. Todo dia eu só penso em poder parar, meio-dia eu só penso em dizer não. Depois penso na vida pra levar e me calo com a boca de feijão
Pedaço de Mim
24. Oh, pedaço de mim! Oh, metade afastada de mim! Leva o teu olhar que a saudade é o pior tormento. É pior do que o esquecimento, é pior do que se entrevar
Pois É
25. Hoje na solidão, ainda custo a entender como o amor foi tão injusto pra quem só lhe foi dedicação
Futuros Amantes
26. Não se afobe, não, que nada é pra já. O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio
27. Futuros amantes, quiçá se amarão sem saber com o amor que eu um dia deixei pra você
Maurício Simionato é jornalista e poeta.
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