Tensão sobre o Tom
- URRO
- 10 de jul. de 2023
- 3 min de leitura
Erva Venenosa
O último show de Rita Lee
Por Maurício Simionato
“Pra que sofrer com despedida? Se quem parte não leva. Nem o Sol, nem as trevas. E quem fica não se esquece. Tudo o que sonhou, eu sei”,
(Cartão Postal, de Rita Lee e Paulo Coelho)
Vou poder contar para os filhos e netos que fui a três shows da Rita Lee (que me lembre). O último deles aconteceu em 2013 e foi o último dela, num Vale do Anhangabaú abarrotado de gente e no dia do aniversário de São Paulo, uma noite de 25 de janeiro, sexta-feira. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o último show dela não aquele de Aracaju (SE), em 2012, quando deixou o palco detida por policiais e foi parar na delegacia após xingar alguns PMs que agrediam pessoas da plateia.

As mais de 35 mil pessoas que estavam ali não faziam a ideia de que aquele seria o derradeiro show da maior roqueira brasileira de todos os tempos, que morreu no dia 8 de maio de 2023, aos 75 anos. De fato, a apresentação de Aracaju, ocorrida meses antes, havia sido anunciada como a última, mas Rita atendeu à convocação para comemorar seus 50 anos de carreira e o aniversário de São Paulo num dos locais mais emblemáticos da capital paulista.
Situado entre a Praça da Bandeira e a Avenida São João, o Anhangabaú da agora em diante também passou a ser palco da despedida da rainha do rock. A nossa ‘Miss Brasil 2000’ do rock. O nome Anhangabaú é indígena e significa, em tupi, algo como “rios dos malefícios do diabo". Nada mais “Simpathy for The Devil”, dos Rolling Stones, e apropriado para um show de rock.
A história mais provável indica que o local ganhou este nome dos indígenas por conta de algum malefício feito pelos bandeirantes (estes sim, realmente maus) aos indígenas nas imediações desse rio, que hoje passa sob o asfalto no Vale.
O mesmo Vale também que também já foi palco do maior comício público brasileiro, as manifestações das ‘Diretas Já’, organizadas em 16 de abril de 1984.
Todo aquele clima da capital estava ali. "Eu acho que São Paulo é a ovelha negra do Brasil", disse, antes emendar um de seus maiores clássicos. O cenário era apropriado. Não faltou a fina garoa. Já passava das 22h quando ela entrou no palco, enrolada à bandeira do Estado. Vestia um terno preto e uma roupa branca com babados. (Não, minha memória não é tão boa assim, eu recorri à internet para lembrar disso).
Foram mais de 1h30 de hits que embalaram o país nas cinco décadas de carreira, com direito a clássicos como Doce Vampiro, Ando Meio Desligado (da fase dos Mutantes), Lança Perfume e Vírus do Amor (talvez a mais paulistana de suas músicas). Por causa da grande repercussão de sua detenção em Aracaju, Rita fez uma brincadeira no meio do show: "Até agora eu não fiz nada, estou comportadinha. Senão, não me pagam o cachê".
No bis, ela apareceu com um boneco de cobra na cabeça para cantar "Erva Venenosa", e foi acompanhada pela multidão, em todos os sentidos.
Em seu livro, ‘Uma Autobiografia’, Rita escreveu sobre este último show e comentou sobre o seu “ritual de aposentadoria dos palcos:
“Dia 25 de janeiro de 2013, no aniversário de 459 anos da cidade, eu entrei no palco do Anhangabaú enrolada na bandeira paulistana e durante toda a apresentação a santa de casa fez, enfim, o milagre de ser ovacionada. Missão cumprida au grand complet [por completo]. O ritual da aposentadoria dos palcos, antes que meu corpo desmoronasse de vez e há muito desejada, finalmente se realizou. 'Rita, hoje é dia do seu definitivo bye-bye Brasil, tenha a humildade de reconhecer que seu tempo passou e tenha o orgulho de sair de cabeça erguida por nunca ter vendido sua alma, que foi rock enquanto rollou, que você foi vencedora naquilo que escolheu seguir. Agradeça aos deuses”.
É Rita, não adiantou você ter questionado a gente na música “pra que sofrer com despedida?”. Eu sofri quando você se foi. Mas restou a memória. Enquanto há tempo para lembrar, tudo o que podemos fazer é lembrar.
Maurício Simionato é jornalista e poeta.
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