top of page

Palavrório

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 29 de mai. de 2020
  • 2 min de leitura

Atualizado: 21 de jun. de 2022

Um silencioso réquiem, por Paulo Reda


Sábado, 21 de março de 2020.


Primeiro dia do outono. Lá fora, um dia ensolarado de letra de Bossa Nova. Avista-se o sol, as árvores, os carros, o filho do vizinho passeando com o cachorro, mas não se vê o essencial: a peste. Em dois dias a cidade entrará em quarentena, só poderemos ir às ruas em casos de absoluta necessidade. Mas já hoje poucos ousam arriscar um passeio.


Dane-se, penso comigo, vamos esticar as pernas!!! Com o jornal, sento em frente ao balcão de um boteco no Mercado Municipal, lugar que em tempos normais estaria apinhado. Hoje só eu. Peço uísque (talvez o último) e leio as notícias. Autoridades econômicas e políticas anunciam com pompa medidas para garantir o futuro dos ricos. Mortes na Itália e Espanha. Traficantes organizam serviços de entrega para garantir o abastecimento dos clientes durante a quarentena.


Os garçons escolhem bebidas para levar embora, já que o bar ficará fechado por tempo indeterminado. Alheios ao pânico geral, organizam churrasco em um sítio. “O que fica melhor com energético, Red Label ou Jackie Daniels”?, me perguntam. Nada fica bom com energético, respondo. Escolhem o Red Label. Besunto as mãos com álcool gel - coisa besta – e volto para casa.


Final da tarde.


Olho pela janela e vejo três viaturas da PM paradas na porta do edifício. Pouco tempo depois, quando já tinham ido embora, perguntei por interfone à faxineira o que havia acontecido.


Ela contou que uma moradora - a quem conheço de vista - que teria problemas de saúde e, talvez em consequência disso, compulsão por higiene e limpeza (eu a identificava como a louca dos germes), não saia de casa para nada desde que as notícias sobre a peste começaram a surgir. Se em tempos normais ela usava máscara e luvas para tudo, o que dirá agora!!!


A polícia entrou a força no apartamento e encontrou-a esfaimada e muito debilitada. Foi levada de ambulância para o hospital. Oh, louca dos germes, oh humanidade!!!

Noite. Qual o livro definitivo sobre a peste? Muitos mencionam a obra homônima, de Albert Camus, mas para mim é “Um Diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe. “Gostaria de ser capaz de reproduzir o som exato daqueles gemidos e lamentações que ouvi de algumas pobres criaturas moribundas no auge de sua agonia e sofrimento”.


Nelson Rodrigues escreveu sobre a devastação da gripe espanhola no Rio de Janeiro em 1918 nas suas “Memórias”, que anos depois seriam relançadas como “A Menina sem Estrela”. “Mais eis o que eu queria dizer – vinha o caminhão da limpeza pública e ia recolhendo e empilhando os defuntos”.


Mas esses relatos jornalísticos e literários de tragédias semelhantes do passado não nos preparam para o que vivemos agora. O que há é uma calma incomum para uma noite de sábado. Não há mortos pelas ruas, cheiros de corpos apodrecidos, barulhos de ambulâncias...Tudo quieto!!! Um silencioso réquiem.


Paulo Reda é jornalista e cronista.

Ilustração: The Philosopher in Meditation, Rembrandt.

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page