Monólogos Ácidos
- URRO

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A bajulação, uma trapaça naturalizada
Por Marcel Cheida
O verbo bajular tem origem latina: bajulare. Deriva do substantivo bajulu, ou aquele que carrega nas costas, um fardo. Ao longo do tempo, como geralmente acontece com as palavras, o verbo bajular adquiriu o sentido de adular, em especial aquele que dispõe e exerce algum tipo de poder.

Adulare, acariciar, lisonjear, foi adicionado à ideia da bajulação. E resultou num significado nada lisonjeiro. Termo empregado rotineiramente nas relações política, em qualquer relação hierárquica, aponta o sujeito oportunista cuja retórica embevece o bajulado. Do mesmo modo dos bajuladores contumazes e ensaboados, os embevecidos estimulam a lisonja em ambiente social para despertar ou realçar o status quo de orgulhoso apedeuta sobre a ardilosidade humana.
D. João VI introduziu no Rio de Janeiro o dia do beija-mão. A aristocracia, os endinheirados traficantes de escravos e os nobres fazendeiros da cana-de-açúcar formavam filas para tocar o rei, mesmo que tenha usado as mãos para acariciar a boca com uma gordurosa coxa de frango retirada do bolso da jaqueta real.
Durante os 13 anos em que experimentou e incorporou o delicioso sol daquele mundo contrastante com o frio de Lisboa, D. João VI deve ter sofrido algum desgaste epidérmico nas mãos lambidas por tantos lábios bajuladores.
Esses anos foram suficientes para internalizar no Brasil a prática do comportamento lascivo para a adulação do rei, ou do imperador e, mais tarde, dos presidentes, governadores, prefeitos, juízes, interventores getulistas, delegados de polícia, entre outros tantos. Ah, não pode ser esquecida a origem dessa prática: a reverência aos sacerdotes.
Como a Igreja Católica foi centro do poder europeu e da américa ibérica, com algumas exceções, no período colonial, a submissão à autoridade divina era representada pelo beijo ao anel papal, se fosse o papa, claro!, cardinalício, se fosse o cardeal, episcopal, se fosse na mão do bispo, ou presbiterial se fosse no dedo de um modesto padre paroquial. Era, ou é, como beijar as mãos de Deus.
Nos tempos atuais, o beija-mão está remodelado, reconfigurado. A bajulação cresceu proporcionalmente ao volume da riqueza. A relação entre os ricos e mais ricos com o poder é moldada pelo interesse e pela necessidade econômica. Desprezar essa relação proporcional é desprezar a concentração de renda e a exclusão das classes C, D e E do processo. Basta ver quando um poderoso governante encontra a turma da Faria Lima ou do agronegócio.
Desde os gregos clássicos, como Platão e Aristóteles, a bajulação era descrita como um comportamento abjeto. Para Platão, a bajulação não passava de manipulação para afastar a verdade e Aristóteles afirmava que o bajulador é sujeito moralmente desprezível na busca de violar a verdade.
Basta assistir aos retóricos e pomposos discursos insinceros promovidos por alguém em alguma instituição para detectar o veneno da adulação cujo valor fica restringido às palavras vazias e à franzina vaidade do bajulado. Mas, o ato da subserviência muitas vezes vil é popularizado em cenas nas quais qualquer autoridade ou sujeito dotado de algum status sociais ou econômico acima da média é alvo de pretensioso comportamento de proximidade afetiva.
Porém, o ato alimenta a sensação de autoridade do sujeito adulado. Erasmo de Rotterdam, em Elogio da Loucura, destaca a lisonja como munição da vaidade que reveste o rei, o príncipe: “É, sem dúvida, esta adulação que cria os reis, os alimenta, os conserva, e os torna mais próximos dos deuses.” A ironia está em que é a estultice (a Loucura) a personagem da lisonja, do elogio perversamente insincero.
Tal conduta sempre tem segundas intenções. Ninguém bajula para, gratuitamente, desprezar alguma vantagem. Busca-se com o ato obter ganho, seja ele político, econômico ou social. Sustenta uma troca teatral entre o estulto e o adulado.
A herança enraizada do beija-mão na esfera dos poderes públicos embaça o senso crítico e exalta a subserviência muitas vezes humilhante. Os eventos dos últimos nove anos, desde o impedimento da presidente Dilma Roussef, houve a expansão das manifestações acríticas em favor de um regime autoritário, sob a alegação de combater o sistema.
Militares voltaram a ser alvos da lisonja, da adulação, da bajulação política. Muitos chegavam (ainda chegam) ao orgasmo por estar diante de um oficial fardado, que se alimentava na vaidade arquitetada para se fechar em si, num iludido salvador da pátria.
Na esfera dos segmentos à esquerda ou centro-esquerda, a bajulação adquire um viés em torno da justificativa da blindagem do governante. Ou seja, há um recurso argumentativo sobre o messianismo do eleito o qual sem ele as forças destrutivas do universo político tomarão conta do poder. Bajular o líder é herança dos regimes autoritários e totalitários, cuja propaganda exaltava a personalidade e não as ideias.
Pois se assim não fosse, o adversário seria esmagado como inimigo do regime, ou do povo personificado no “grande líder”. Mas, cuidado: o mundo político não é um sistema de direita x esquerda, em duas caixas bem recortadas, as quais não apresentam porosidade entre si. A bajulação contamina a ambas.
Alguns políticos com autoridade governamental são idolatrados com rótulos baratos, como “ele é um técnico”, “ele é um empresário”, “ele não é político” e por aí vai, numa tentativa de usar a bajulação para afrontar a verdade: político é político, em qualquer cargo eletivo.
Talvez, tenha sido Machado de Assis quem melhor sintetizou o comportamento bajulatório. No conto O Empréstimo, o escritor aborda o contraste entre dois sujeitos de classes sociais distintas, um rico, o tabelião Vaz Nunes, e um pobre, Custódio. Este solicita um empréstimo àquele, para investir numa fábrica de agulha. O rico diz que não tinha o dinheiro pedido, mas lhe entrega uma nota de um valor bem menor do que o solicitado. Assim, a amizade entre ambos fica comprometida pelo empréstimo, e Custódio vai enfrentar a dificuldade de honrá-lo.
Como o conto relata “uma anedota” sobre o passado, no qual o autor afirma: “Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade.” Machado de Assis ironiza o tom bajulatório que adquire a exaltação extrema após a morte daquele que, em vida, era visto muito mais pelas contradições.
No dia a dia do Brasil, nos municípios os vereadores se incumbem do papel da adulação. São diplomas e títulos diversos a homenageados, numa estratégia permanente de agrado ao eleitor. É a bajulação no atacado.
É claro que esse comportamento não se confunde com o reconhecimento de atos praticados por cidadãos, os quais – sinceros – evitam a popularização. Fazem no silêncio da humildade e do senso de solidariedade fraterna. Tais condutas nem sempre são evidenciadas, pois carregam a sinceridade em si. Não fazem para obter glórias, todas efêmeras. Fazem para se convencer de que estão certos e agem moralmente para aquecer o coração.
Nos tempos atuais, o beija-mão está remodelado, reconfigurado. Há a analógica e há a digital. A analógica se dá na encontros e relações interpessoais. A digital ocorre nas redes, porém isoladas e quase abafadas pela cultura linguística do insulto.
Alguns exemplos de atitudes aduladoras encontram-se em frases populares, como “seu trabalho é impecável, excelência”, “essa ideia é genial”, “você é exemplo para todos nós”, “sem a sua ajuda nós não conseguiríamos”, naturalizadas pelo uso.
A bajulação cresceu proporcionalmente ao volume da riqueza. É um comportamento intrínseco ao mundo da riqueza. A relação entre os ricos e os mais ricos com o poder é moldada pelo interesse e pela necessidade econômica.
Desprezar essa relação proporcional é desprezar a concentração de renda e a exclusão das classes C, D e E do processo. Basta ver quando um poderoso governante encontra a turma da Faria Lima ou do agronegócio. Os interesses moldam o comportamento adulador, na espera da troca vantajosa para um dos lados.
No cenário da construção de uma realidade social, os jornais contribuem com as colunas sociais. Apesar de ter havido uma reformulação editorial no gênero, ainda prevalece o tom da lisonja seletiva, pois os personagens citados nas colunas geralmente são classe média alta, classe média com alguma projeção, autoridades diversas e, sim, os milionários.
E haja adjetivos para lambuzar os sujeitos publicados. O tom padrão das colunas é a lisonja. Naquele mundo ilusório, todos são lindos, assépticos, cordatos, elegantes...esponjosos. Sim, pois parecem colher todo o pó do mundo para eliminá-los em sopros cínicos.
Ibrahim Sued é tido como o inovador do colunismo. Criou e deixou algumas frases que expressam uma pretensão modernosa com a preservação da lisonja: pantera, termo empregado para as mulheres mais bonitas, jovens e torneadas; gente fina é outra coisa, no tom do preconceito e da divisão entre os dotados de sobrenome e modos civilizados; uma delas expressiva, a inveja é o mau hálito da alma, numa resposta aos seus detratores.
Depois, outros tantos tentaram imitá-lo, sem o talento de um carioca que expressava o viés da nova corte do Rio de Janeiro. Nesse caso, o bajulado era o próprio colunista.
Bajular, contudo, é trapacear. É um dispositivo de inteligência estruturado, planejado e adotado para buscar a atenção do alvo, conseguir dele o olhar e a possibilidade de respostas positivas que materializem um favor, um benefício. É diferente de enganar, que traduz uma certa relação de ingenuidade, pois o autor pode se enganar, ou pode enganar alguém na armadilha. Bajular é trapaça, é fraude, contudo, aceita nos melhores círculos sociais.
Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.
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