top of page
  • Foto do escritorURRO

Monólogos Ácidos

Atualizado: 27 de nov. de 2023

A era dos zumbis digitais

Ou como deixamos para o passado nostálgico a ilusória liberdade de imprensa

Por Marcel Cheida



Uma das ideias e conceitos central na democracia moderna é a liberdade de imprensa. Expressão nascida durante a crise de governo na Inglaterra, no século XVII, coube ao escritor e poeta John Milton a defender o direito de o impressor de livros imprimir qualquer ideia, opinião, sem controle governamental. Mais tarde, na formulação da declaração da Independência norte-americana, a primeira emenda à carta constitucional estabeleceu o princípio que proíbe o Congresso daquele país votar e aprovar leis que impeçam a liberdade de imprensa. Na Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem prevê no artigo 11: “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.”


Tais documentos ajudaram a influenciar as rupturas nos sistemas políticos e sociais desses povos, ao afrontar os regimes monárquicos absolutistas ou a censura e licenças prévias para imprimir. Assim, contribuíram para adensar a crença na imprensa livre como meio de expressão e circulação de ideias e opiniões destinadas a fortalecer as democracias. As empresas jornalísticas, desde então, obtiveram benefícios variados, nem sempre destinados ao público leitor, pois os proprietários passaram a usar o poder dos jornais para conquistar vantagens pessoais e familiares.


A sensação de liberdade e da ausência de controle governamental sobre a imprensa foram chegando gradualmente nos vários países. Mesmo no século XX, na América do Sul, a maioria dos governos detinha instrumentos de controle da imprensa, amparados pela força e pelo uso de leis draconianas destinadas ao julgamento, condenação de jornalistas e o fechamento de jornais.

Nesses cenários, as empresas e os jornais foram se adaptando e encontrando brechas para adular governantes e se enriquecer. Investiram no mau jornalismo, nas notícias falsas; hoje, com as redes sociais, competem com as fake news induzidas pela cultura digital que atinge em cheio os meios políticos. A geração digital resultou em personagens adeptas de novas correntes que se declaram inimigas do sistema das práticas tradicionais da comunicação social e da política que sustentam os regimes democráticos, em especial os que combinam projetos progressistas, com fortes investimentos do Estado, e os liberais impregnados do capitalismo, que advogam a iniciativa privada e o mercado consumidor como molas do enriquecimento.


Enquanto os jornais vão se diluindo em meio à cacofonia da internet e das redes sociais, as teorias da conspiração, o preconceito e as fake news fermentam a expansão da extrema-direita em vários países, desde a Inglaterra, com o brexit, a Hungria e o nacionalismo do tiranete Victor Urban, a Itália, com o palhaço Beppe Grillo, a Índia com Narenda Modi, o supremacista racial, o Brasil com Bolsonaro e os EUA com Donald Trump, cujo marqueteiro da campanha eleitoral, Steve Bannon, personalizou o nacional populismo digital.


Agora, o personagem da América do Sul é o telepata canino Javier Milei. Todos eles têm em comum o desvalor do sistema e o incentivo às correntes do ódio, do nacionalismo retrógado, do autoritarismo e da intensa propaganda baseada em ilusórias e delirantes frases de efeito modulas e embaladas pelas fake news. Vale, aí, o meio, a adesão da audiência nas redes sociais, a bolha digital, a intensa e contínua produção e divulgação de informações improcedentes, uma atrás da outra, de modo a evitar o tempo para verificar se são válidas, se são verdadeiras ou não.


As redações não conseguiram, até agora, impedir que tal cultura as contaminasse. É inevitável. Não há volta. Pois a acelerada produção e divulgação de conteúdos nas redes sociais supera o tempo do planejamento, apuração e edição das informações jornalísticas. Ainda há o agravante das profundas mudanças ocorridas nos jornais, impressos, eletrônicos, principalmente, que cortaram e reduziram o quadro de jornalistas. Há alguns anos substituem os profissionais mais experientes por jovens e estagiários, cujo repertório e domínio da atividade estão comprometidos pela experiência ainda neófita.


Outro fator a contaminar os jornais são as assessorias de imprensa ou as consultorias de comunicação. Originalmente, nasceram, no Brasil, sob a perspectiva de facilitar e organizar as informações destinadas à imprensa. Mas, logo passaram a ser paredes de proteção dos assessorados, de modo a impedir o acesso dos jornalistas a essas fontes, autoridades e dirigentes de organizações diversas. As notas oficiais tomaram conta das relações entre jornais, governos, governantes e empresas. É muito comum prefeitos, governadores e até deputados, federais ou estaduais, evitarem os jornalistas. Optaram, há tempos, a se dedicar às redes sociais e à divulgação de releases destinados aos jornais impressos ou eletrônicos. Raramente ocorrem entrevistas coletivas, com perguntas, respostas, réplicas e tréplicas.


Logo no início do governo, Bolsonaro aceitou o porta-voz, o general Otávio Santana do Rêgo Barros, que não durou muito no cargo. O então presidente, orientado pelo filho Carlos Bolsonaro (Carluxo) e outros assessores, optaram pelas redes sociais, pela live semanal, na qual cultivava o monólogo. Quando tinha de enfrentar jornalistas, numa ocasião ou outra, Bolsonaro se irritava, agredia repórteres e destratava a imprensa.


Um dos casos mais escandalosos foi como tratou a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de São Paulo, por ela ter descoberto o esquema de produção e o disparos massivos de fake news, financiados ilegalmente, na campanha eleitoral de 2018, em favor de Bolsonaro. Em junho de 2022, Patrícia ganhou uma ação por indenização por danos morais contra Bolsonaro, por este de afirmado que ela queria “dar o furo”, numa maliciosa afirmação de menosprezo e humilhação dirigida à repórter.


Nessa cultura de contaminação da política pelo vale tudo das ofensas e insultos, qualquer cobrança de projeto de governo se torna alvo de desprezo, pois o que vale é a cacofonia digital, numa aparente terra de ninguém, onde todos podem surtar, delirar e exteriorizar impressões pessoais, sentimentos vis e ofensas a quem quer que seja. Um comportamento que significa combater as instituições. É a combinação planejada e projetada do ódio como sentimento de desprezo à política e à democracia, as quais exigem a razão e a experiência das relações coletivas. O bolsonarismo é munição para desprezar a razão, o pensar, o conhecimento, enfim.


Estratégia da rede


Gianroberto Casaleggio é considerado o arquiteto da cultura e das estratégias digitais contra o sistema tradicional da política italiana. O marketing digital é o domínio desse gestor, que formulou o projeto de ascensão de um comediante, Beppe Grillo, para a política italiana. Casaleggio é apresentado por * Giuliano Da Empoli, pesquisador e ex-aluno da escola Siences Po, de Paris, o que lhe cimentou a carreira como secretário da Cultura em Florença. Ele desvenda o submundo do marketing digital destinado a estimular a adesão massiva contra o sistema, “Os engenheiros do caos”, que tem um subtítulo um pouco prolixo: “Como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”. Publicada, no Brasil, em 2022, pela editora Vestígio, S.P., nela o autor perfila as ideias de Gianroberto e do filho, Davide, os quais demonstram profunda ojeriza à política: “A política não me interessa (...). O que me interessa é a opinião pública”. A afirmação, de Gianroberto, sintetiza a visão de mundo desse ex-funcionário da Olivetti durante 30 anos e que a deixou para fundar a Casaleggio Associati e criar um universo discursivo de estímulo à opinião pública digital.


O filho, Davide, alinhava a estratégia de fundo do que fazem em favor de candidatos histriônicos, marginais do sistema e da expansão da audiência: “As informações sobre as interações locais permitem compreender um sistema emergente e, se possível, modificá-lo. Por exemplo, saber que as formiga mudam de trabalho se encontram certo número de outras formigas que exercem as mesmas tarefas nos permite compreender suas decisões.” Ou seja, o comportamento de formiga, o formigueiro, é o indicativo de como pai e filho veem o público que adere às bolhas digitais.


Para ter eficiência, o sistema de comunicação digital, baseado em blogs, redes sociais, whatsapp, telegram, reddit, entre outros, trata os adeptos como formigueiro: “É preciso que os participantes sejam numerosos, que se encontrem por acaso e que não tenha consciência das características do sistema no seu todo. Uma formiga não deve saber como funciona o formigueiro, do contrário, todas as formigas desejam ocupar os melhores postos e os menos cansativos, criando, assim, um problema de coordenação.”


Da Empoli sistematiza, então, esse modelo: “Uma organização complexa, com uma fachada descentralizada, no seio da qual nenhuma formiga deve conhecer o projeto geral, nem os papéis exercidos pelas outras. Essas informações são reservadas a um demiurgo externo e onisciente.”


O modelo foi aplicado em vários países. O bolsonarismo sorveu essa experiência e conquistou uma pesada audiência que se identificou com o discurso do insulto, com a cacofonia temperada pelo delírio da terraplana, do fantasma do comunismo, das pornográficas mamadeiras de piroca e dos bizarros ataques à fantasiosa ideologia de gênero.


Há algo mais maligno que combina essa propaganda bolsonarista com os projetos desenvolvidos nos escaninhos e salas assépticas. O planejamento e a programação das redes sociais embutem ferramental rico em intenções manipuladoras sobre quem navega por elas. Da Empolli cita o empreendedor Sean Parker, um dos cofundadores da Napster, e ainda financiador do Facebook/Meta. Parker revela a estratégia dos fins não importam os meios para elevar e manter a audiência das redes:


“Nós fornecemos a você uma pequena dose de dopamina cada vez que alguém curte, comenta uma foto ou um post, ou qualquer outra coisa sua. É um loop de validação social, exatamente o tipo de coisa que um hacker como eu poderia explorar, porque tira proveito de um ponto fraco da psicologia humana. Os inventores, os criadores, eu, Mark (Zuckerberg), Kevin Systrom, do Instagram, estávamos perfeitamente conscientes disso. E, mesmo assim, fizemos o que fizemos. E isso transforma literalmente as relações que as pessoas têm entre si e com a sociedade como um todo. Interfere provavelmente na produtividade, de certa maneira. Só Deus sabe qual efeito que isso pode produzir nos cérebros (sic) de nossos filhos.”


Os donos dos jornais, na era analógica, não revelavam tal ambição de controle sobre os leitores. Foram gatinhos diante da fome desses brucutus digitais. De um jeito ou outro, havia uma certa galhardia, um certo cavalheirismo em torno de algum ideal sobre o papel do jornal. Essas intenções, porém, não impediram de os grandes jornais publicarem reportagens impertinentes, com informações improcedentes, mentirosas, para poderem atingir determinados objetivos políticos ou financeiros. Era a época da expansão industrial como ambiente da produção dos jornais impressos, boa parte deles dependentes de verbas oficiais. Mas, essa discussão fica para outro artigo, pois a era de ouro da liberdade de imprensa ficou no passado; hoje, é a livre e caótica cacofonia das redes sociais a gerar os zumbis digitais.


* Da Empolli, G. Os engenheiros do caos - Como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2022.



Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.












27 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page