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Monólogo Ácidos

O absoluto e o relativo

Por Marcel Cheida


A última semana de junho deste ano foi impregnada por discursos, afirmações e decisões polêmicas. O contraditório permeou o julgamento do Tribunal Superior Eleitoral ao condenar o ex-presidente da República, isso mesmo, República, Jair Messias Bolsonaro, à inelegibilidade; mais polêmicas com as afirmações do presidente Lula sobre democracia, o golpe de Estado e os rumos da economia que tem dado indicativos de estabilidade, contenção inflacionária e retomada do crescimento, apesar dos juros vergonhosos e cruéis.



Nessa semana, o presidente Lula convocou a militância petista para se mobilizar permanentemente contra possível golpe de Estado e participou do 26º Foro de São Paulo, depois de declarar, numa entrevista a uma emissora de rádio gaúcha, que a “democracia é relativa”. O alerta sobre o golpe decorre de dois eventos recentes, a cassação da presidenta Dilma Rousseff, em agosto de 2016, e as manifestações sediciosas do dia 08 de janeiro em Brasília. E a afirmação sobre a relativização do regime político foi resposta à pergunta do repórter sobre o governo venezuelano.


A pergunta foi a seguinte: “Por que o senhor, o seu governo e parte da esquerda brasileira têm tanta dificuldade em considerar a Venezuela uma ditadura?"


O que o Lula respondeu: “Olha, deixa eu te falar uma coisa. A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil. A Venezuela, desde que o Chaves tomou posse... Deixa eu te falar uma coisa, o conceito de democracia é relativo para você e para mim. Eu gosto da democracia, porque a democracia me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez. Por isso que eu gosto da democracia e a exerço na sua plenitude. Aqui, eu acho que o mundo inteiro sabe que a governança do PT aqui é exemplo de exercício da democracia. Precisa aprender a respeitar o resultado das eleições. O que não está correto, o que não está correto é a interferência de um país dentro de outro país.”

Lula está certo?


As críticas, favoráveis ou não, tomaram as redes sociais e os discursos políticos em Brasília. Os jornais amplificaram a afirmação de Lula bem como os ataques diversos dos adversários e de especialistas.


Bem, a pergunta do repórter já traz um embaralhamento. Pois Venezuela é um país, um território ocupado politicamente na forma de Estado. O governo pode, sim, ser autoritário, com as nuances formais, legais, que moldam qualquer sistema. Ou seja, o regime político pode ser ditatorial, autoritário, totalitário, democrático ou republicano. O repórter, consciente ou não, usou de uma figura de linguagem, a metonímia, para relacionar o País com o governo, mesmo que conceitualmente (na perspectiva sociológica, jurídica e até econômica) sejam figuras distintas.


Vale recorrer, sempre, aos clássicos quando tais questões se perdem no tempo fugaz dos jornais e da mídia digital e são submetidas à reciclagem semântica que esmigalham os significados; do mesmo jeito que governantes autocratas ou regimes ditatoriais ressignificam os termos para se amparar num mínimo de legitimidade discursiva. E o termo da moda os últimos anos é narrativa em substituição à propaganda, à retórica, às versões ou aos meros relatos delirantes.


A Constituição Federal do Brasil estabelece como cláusula pétrea o Estado Democrático de Direito (Art. 1º), e a forma federativa republicana. Ou seja, os termos democrático e republicana soam como adição de dois modelos originários dos antigos regimes, o grego e o romano. O grego organizado com a participação direta dos cidadãos (polites) e o republicano, romano, pela representação do cidadão (civilis) pelo Senado. Os dois berços, portanto, apresentavam na origem distinções estruturais, apesar do princípio: o governo organizado conforme a vontade dos cidadãos. Mas, para os gregos, mulheres, trabalhadores braçais ou artesãos e estrangeiros, os bárbaros, não participavam da ekklesía, a assembleia na qual os cidadãos, predominantemente homens, discutiam livremente os rumos do Estado. Havia, sim, um princípio excludente.


Em Roma, também o cidadão romano, identificado pela origem familiar, ancestral, e pelos costumes era representado pelos senadores. Estrangeiros, escravos e mulheres eram impedidos de participar da política, com exceção de alguns, raros, escravos libertos. E a participação se dava pelo plebiscito, a consulta popular sobre decisões ou deliberações do Senado. Um dos fatores que contribuíram para essa diferença é que, no território grego, as cidades estados abrigavam uma população muito menor que a do Império Romano. Assim, com população menor, a participação direta era possível, viável. Com a população de Roma, que no período áureo da cidade contabilizou mais de 1,5 milhão de habitantes, a representação era adequada, mas combinada com a consulta, o plebiscito.


Na origem histórica, portanto, dois modelos: a democracia direta e a representativa. Ambas, contudo, excludentes, discricionárias.

Essas diferenças são realçadas ao longo do tempo, quando na Modernidade é restaurado o princípio republicano na organização dos Estados que derrubaram as monarquias absolutistas. O valor da liberdade individual, então, se torna realçado como elemento central na estruturação dos estados modernos, que passam a se organizar em torno dos direitos dos cidadãos e do povo e não mais do direito divino dos reis. A Declaração da Independência norte-americana e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão na França revolucionária foram os documentos angulares para a nova formatação e estruturação dos estados modernos. Os princípios da igualdade e dos direitos universais cimentaram a soberania do voto popular.


Se países Europeus ou norte-americanos, EUA e Canadá, construíram regimes democráticos eficientes, com suas singulares contradições, na América Central e do Sul a história não foi a mesma. O Brasil viveu o regime imperial monárquico a partir de 1824, pós Independência, depois, 1890, uma República controlada pelo patrimonialismo de uma minoria integrada por oficiais do Exército e por presidentes fruto de eleições controladas, fraudadas e excludentes. Ou seja, uma República retórica.


No preâmbulo da Constituição, o termo República aparece pela primeira vez na lei maior do País: Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Percebe-se a inspiração norte-americana na expressão Estados Unidos. Mais tarde, o getulismo moldou a ditadura nas mãos de um dos políticos mais multifacetários da nossa história. Foi nesse período que o Brasil conquistou avanços fundamentais na estruturação de sua economia, com a modernização das leis trabalhistas e da industrialização. Na Carta de 1934, o mesmo título: Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. A ideia de república estava aparentemente consolidade, na formatação de um estado de inspiração positivista, baseado na razão e na ciência e não, propriamente, na vontade popular. A mentalidade de época adotava o modelo de uma sociedade desigual e distante da possibilidade da ascensão das classes sociais subalternas. Ou seja, o povo que se lixe.


Depois, veio o golpe de 1937 e a ditadura. Sem esse regime, Getúlio não conseguiria “modernizar” o País. A guerra na Europa foi contribuição decisiva para que o modelo nazifascista fosse desidratado entre os notórios governantes e políticos de então, muitos deles simpáticos a Hitler e a Mussolini. Aí, os EUA negociaram impositivamente com Getúlio para o Brasil aderir aos aliados. Deu no que deu: os militares aceitaram montar as Forças Expedicionários para enviá-las à Europa e combater os alemães com o amparo dos aliados.


Entre 1946 e 1964, o projeto de democracia, baseado nas eleições livres, universais, enfrentou eventos que buscavam frear o processo político. A reação dos militares à eleição e posse de Juscelino Kubitschek de Oliveira, em 1955, a resistência à posse e ao mandato de João Goulart em 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros. Nesses episódios, a presença militar era protagonista dos golpes de Estado. Novamente, a Constituição de 1946 declara os Estados Unidos do Brasil, e ressalta o regime republicano e democrático.


Como contraponto aos regimes totalitários europeus, a Constituição de 1946 adota o princípio das liberdades individuais como motor da organização do estado de direito. Mas, nem tudo era absoluto, pois o presidente eleitor, Eurico Gaspar Dutra, simpatizante do Integralismo, de origem fascista, determinou a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro, de 14 deputados eleitos e do senador Luís Carlos Prestes, além de romper relações com a União Soviética. Vale ressaltar que Prestes teve uma votação estupenda, recorde, à época. O PCB conseguiu mais de 500 mil votos para formar a representação de deputados e senadores, num universo de pouco mais de seis milhões de eleitores. Os comunistas eleitos à época apregoavam a defesa do processo eleitoral para chegar ao poder.


Aí veio 1964, cujo regime autoritário, tecnocrático, durou 21 anos. E deixou sequelas até os dias de hoje. A partir de 1988, uma Constituição Federal marcada pela oposição aos regimes autoritários institui novos fundamentos na organização do Estado. As cláusulas pétreas dão um sentido marcado pela autoridade da Carta em impedir arroubos ditatoriais, tirânicos.


A política é um processo de ganhos, de rupturas, de desvios e até segmentos lineares. A breve história do Brasil, frente a Estados mais antigos, é marcada pela brevidade democrática e republicana restritas. Muito mais retórica do que manifesta. Ou seja, tais regimes não prosperaram por aqui, com exceção dos últimos 35 anos. Mas, os solavancos com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e o mandato do tal capitão Jair Bolsonaro, cuja narrativa o tachou de mito, e a ameaça do general Vilas-Boas, comandante do Exército, via twitter, para assegurar a permanência do então ex-presidente Lula na cadeia, então réu condenado no processo da lava jato, formaram um quadro ameaçador à democracia.


A eleição e o mandato de Bolsonaro foram uma apologia aos regimes autocráticos, municiados pelo uso da força militar contra ameaças delirantes personificadas nas mamadeiras de piroca, no kit gay, no comunismo, nas universidades orgiásticas, nas escolinhas do ensino da sexualidade precoce e degenerativa, homossexual, no combate à criminalidade inspirada na lei do talião, no culto à personalidade e na retórica contra o tal sistema. Todos os delírios e abstrações viralizados pelo uso sistemático das redes sociais, pelos idiotas da aldeia, como bem constatou Umberto Eco. A Constituição de 1988, com os fundamentos ou princípios democráticos, amparou a eleição de um desgoverno personalista, de apologia aos regimes autoritários.


Ao afirmar a relativização da democracia na resposta sobre o caso da Venezuela, Lula expôs um raciocínio de tom pragmático. Ou seja, pretendeu dizer que vários Estados adotam as eleições como recurso central para justificar a democracia. Depois, emendou um “eu gosto da democracia”, pois o regime o levou a ser eleito por três mandatos. A expressão personalizada foi emendada pelo argumento de que o PT sempre primou pela democracia, pois desde a formação e nos mandatos seguidos nunca houve conspiração contra o Estado de Direito ou tentativa golpista, e mesmo pretensas ações revolucionárias. Os governos petistas, de certo modo, aplicaram os requisitos da negociação, da composição partidária e da busca dos consensos, típicos da social-democracia. Algo muito, mas muito distante do socialismo ou do utópico comunismo.


Norberto Bobbio, na esclarecedora obra Teoria Geral da Política, observava: “Hoje, ‘democracia’ é um termo que tem uma conotação fortemente positiva. Não há regime, mesmo o mais autocrático, que não goste de ser chamado de democrático. A julgar pelo modo através do qual hoje qualquer regime se autodefine, poderíamos dizer que já não existem no mundo regimes não-democráticos” (p. 375). Nessa perspectiva, Lula está certo. Mas, na sequência, Bobbio enquadrava o comportamento pretensioso de Bolsonaro, sem conhecê-lo: “Se as ditaduras existem, existem apenas, como dizem os autocratas, com o objetivo de restaurar o mais rápido possível a ‘verdadeira’ democracia, que deverá ser, naturalmente, melhor do que a democracia suprimida pela violência.” Bolsonaro afirmava que o voto não iria mudar o Brasil, e que precisavam ser mortos mais de 30 mil brasileiros para pôr ordem na política. Bobbio sabia do que falava.


Também Maduro se encaixa, sem dúvida, no perfil do autocrata, no perfil personalista, num regime que relativiza e viola princípios do Estado Democrático de Direito. Mas, sem ser um regime autocrático, ou ditatorial, os governos democráticos têm seus dias de violação dos direitos. E os exemplos são muitos, pois preservar o poder, como dizia Maquiavel, é fim maior e tudo justifica para mantê-lo. Vale lembrar que Bolsonaro elogiou e manifestava simpatia ao coronel Hugo Chaves, autor do golpe de estado que submeteu o Legislativo e o Judiciário ao regime autocrático.


Lula tem plena consciência do que representa. Mexer com esses temas é tirar do obscurantismo dos últimos seis anos os problemas enraizados e pouco debatidos à luz de um regime de liberdade, cuja sociedade carrega uma herança autoritária, mística, machista e escravagista. Ainda somos um Estado em construção, cheio de erros, controlados por minorias, cujos processos eleitorais estão eivados de vícios, como o poder econômico aplicado sobre eleitores nem sempre preocupados em conhecer em quem vota ou votou.


Pode-se tomar o termo democracia em seu sentido axiológico, valorativo, portanto abstrato. Pode-se avaliar os regimes democráticos de modo relativo, conforme o histórico e a cultura política de cada povo. Na dimensão abstrata, portanto, a democracia pode ser algo absoluto. Mas, evidentemente a modernidade enraizou alguns requisitos, ou princípios, basilares para os regimes democráticos, como as eleições livres, periódica, a rotatividade dos governantes eleitos diretamente, dos mandatos limitados, do direito ou não à reeleição, do voto universal, sem discriminação, da soberania do cidadão eleitor, da liberdade da criação dos partidos políticos, e da existência de uma Carta Constitucional como contrato social e político, dos três poderes independentes (e harmônicos). Esses aspectos, de tom universal, são moldes para uma prática democrática. Ocorre que, a depender o estado e do governante, tais requisitos são manipulados e formatados à vontade do tiranete.


Assim, a relativização integra o processo de construção moldado pelos princípios abstratos, que são aplicados e relativizados conforme a experiência histórica de um povo.


A democracia só é possível no Estado de Direito, como princípio aplicado no processo político. Portanto, a democracia é sempre a materialização de algo inacabado, nunca absoluto.

Os militares e as urnas

Na mesma semana, repercutiu a reportagem do Financial Times sobre os bastidores de negociações entre a CIA, o governo do Biden e militares brasileiros. Ou seja, os avisos dos diplomatas norte-americanos relativizaram a vontade do bolsonarismo em deslegitimar as urnas eletrônica e o voto do eleitor.


Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.

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