Calhau
- URRO

- 10 de ago.
- 6 min de leitura
Atualizado: 4 de set.
Faltam cinco minutos para o jogo acabar
Por Roberto Cardinalli
O que foi que só você viu? Silvio Luiz
Camaraaaadas do futebol. Assim, Apolônio de Oliveira, o Polão como gostava de ser chamado pelos amigos, abria às seis horas da tarde em ponto sua jornada esportiva semanal, de segunda a sexta, na principal emissora de rádio AM da cidade. O programa já chegou a ter uma hora de duração e ser líder de audiências em todas as pesquisas. Notícias do futebol de Campinas e da capital paulista brotavam aos montes. Craques, boleiros, atacantes, volantes de contenção, meio-campistas, técnicos, cartolas e até os enganadores e os fanfarrões passaram por lá.
Patrocinadores faziam fila para ouvir suas ofertas na boca de Apolônio.
Nos tempos áureos, quando Campinas era conhecida como a capital do futebol brasileiro entre os idos de setenta e oitenta, Polão era figura carimbada nas resenhas esportivas de domingo à noite em cadeia nacional de televisão.

Futebol, 1935. Pintura óleo sobre tela de Candido Portinari
Barbudo e careca, mas com longos cabelos atrás da nuca, com seus jeans desbotados arrastando pelo chão, camisa de manga curta e bolsa tiracolo de couro, Polão não resistia a uma caninha brava pra chuchu nas preliminares dos clássicos que cobria para rádio e para o jornal da cidade. Quando ficava sem o mé, fazia gato e sapato dos jogadores pernas de pau em suas crônicas. Sua língua era afiada, e amolada quando faltava àquela dose.
Polão é um sujeito gordo que faz das tripas o coração para acompanhar cada lance. Briga até com o videoteipe para não perder uma discussão futebolística. Sempre durango, pagava fiado até o Ederval Pratinha, o motorista de táxi mais responsa da cidade, para levá-lo até os estádios. Católico praticante, devoto de São Jorge, adora devorar as guloseimas mais açucaradas da padaria da Regina.
Seu hobby é colecionar compactos de vinil de hinos dos clubes de futebol, que ouvia nos poucos momentos de folga. Tem mais de cem, como as raríssimas canções do Asa de Arapiraca e do Treze de Campina Grande. Entre os preferidos estão o do Fluminense e do América do Rio, ambos compostos por Lamartine Babo. O boco-moco sempre quiz fazer picadinho dos focas de jornalismo que costumavam lhe visitar na redação. Antes dos lorpas lhe perguntarem qualquer coisa, vociferava: “jovem não tem passado; não tenho tempo pra vocês”. Soltava cobras e lagartos; e aos gritos e palavrões punha-os na rua.
Sua primeira cobertura esportiva profissional foi um domingo quente em vinte e sete de agosto, num jogo no Brincão lotado com quase vinte e uma mil pessoas espremidas para assistir Guarani e Palmeiras, válido pelo segundo turno do Campeonato Paulista de 1972. A renda atingiu quase duzentos e cinquenta mil cruzeiros; naquela época o anel da arquibancada sul ainda estava em construção.
Depois de um primeiro tempo chocho, a peleja esquentou na etapa final. Polão, primeiro, viu Amaral, o Feijão Maravilha, e que envergou a camisa quatro da amarelinha na copa de setenta e oito, na Argentina, salvar de puxeta um gol feito do periquito. O crioulo se esticou o máximo que pôde e tirou com a ponta do bico da chuteira a bola que encobria Tobias, completamente perdido no lance e que não pulou uma gilete.
Depois de um primeiro tempo chocho, a peleja esquentou na etapa final. Polão, primeiro, viu Amaral, o Feijão Maravilha, e que envergou a camisa quatro da amarelinha na copa de setenta e oito, na Argentina, salvar de puxeta um gol feito do periquito. O crioulo se esticou o máximo que pôde e tirou com a ponta do bico da chuteira a bola que encobria Tobias, completamente perdido no lance e que não pulou uma gilete.
Na sequência, Mingo, com um petardo, furou, aos dezoitos minutos do segundo tempo, a rede de Leão. A torcida não percebeu que a bola tinha entrado e demorou para comemorar. O tinhoso ponta esquerda dava umas patadas que lembrava o Reizinho do Parque; claro, sem misturar alhos com bugalhos. O empate veio aos trinta e três minutos num pênalti pra lá de duvidoso marcado pelo gatuno José Favilli Neto, em cima de Fedato. César Maluco bateu forte no canto esquerdo, sem chances para o arqueiro.
Estiveram em campo naquele dia nada mais nada menos que Flamarion, Clayton, Ademir da Guia, Luiz Pereira e Leivinha. Osvaldo Brandão dava as cartas no verdão, e o bonachão Zé Duarte, no Guarani. O Palmeiras seria o campeão ao final da temporada; o primeiro título estadual desde 1966. O esmeraldino ainda impediu que o São Paulo fosse tri naquele ano. Já o Bugrão se sagrou campeão do interior, muito honroso naqueles tempos.
Antes disso, entretanto, Polão, por um ano, comeu o pão que o diabo amassou como carregador de cabos e fios da emissora. Foi quando acompanhou de perto a trajetória do Esporte Clube Gazeta que se tornou campeão invicto do Campineirão de 1971. Polão tem na cabeça toda a história do tricolor, formado inicialmente com um jogo de camisas doado pela sucursal do jornal a Gazeta Esportiva. Lembra muito bem de um jovem ponta direita franzino muito esforçado que foi retirado do time sabe se lá por quê. Ainda bem, bradava aos colegas de profissão, pois a cidade ganhou o lendário jornalista Zaiman de Brito Franco.
Polão soube por meio de suas fontes, que um dia Zé do Pito, um lateral atrevido do Gazeta, saiu do vestiário antes da partida para ajudar a montar o equipamento de um jornalista em começo de carreira. Queria ficar bem na fita com a imprensa. Quando retornou ao vestiário o técnico Cilinho (ele mesmo!) passou lhe um pito e no final estrebuchou: “Hoje você vai comentar a partida!”. Zé do Pito, que também era vice-presidente do clube, amargou o banco por um bom tempo. Até que numa manobra conseguiu assumir a presidência. Chamou Cilinho para uma conversa particular na sede do clube que ficava nas imediações do Largo do Rosário e ordenou: “ou você me põe como titular ou está demitido”.
Em junho de 2019, Polão foi convidado para o churras de comemoração dos sessenta e nove anos do Gazeta numa chácara improvisada em Barão Geraldo, e que contou com grandes craques do passado de Campinas. Lá descobriu o lado visionário de Pery Chaib, um dos fundadores e presidente do Gazetão. Perguntaram a ele, porque não deixava para realizar a festança em 2020, quando o clube iria completar setenta anos. “Sei lá. Vai que acontece alguma coisa”. Pois é.
Polão ainda tem uma memória de elefante. Sabe de cor e salteado a escalação de todos os atletas que disputaram os duzentos e dez derbis da cidade, sendo setenta vitórias do Guarani, sessenta e sete vitórias da Ponte e ainda sessenta e nove empates. O primeiro jogo foi em 1912. Sabe se lá quem ganhou.
Mas o último dérbi que Polão participou ocorreu com portões fechados e sem um mísero torcedor, por imposição da praga. Teve de tudo. Suspense. Ansiedade. Emoção. Surpresa. Confusão. Virada. A Ponte abriu um a zero. Logo em seguida fez dois a zero. E foi para o vestiário cantando vitória. Parecia ter liquidado a futura. Mas tudo mudou. O Bugre fez um. Depois dois. E pimba! O gol derradeiro, com requinte de crueldade, foi uma pintura marcado aos quarenta e três do segundo tempo por um lateral esquerdo maneta, que pegou o goleiro adversário de calça curta.
A peleja acabou em pancadaria. Sobraram socos e pontapés para todos os lados. Polão, em sua última jornada há mais de cem dias, viu, depois de fechar-se as cortinas do espetáculo, um enfurecido atacante da Ponte Preta tirar satisfações com o goleiro do Guarani, por conta de um humilhante chapéu aplicado pelo arqueiro no camisa nove.
Mas, para Polão, o futebol se foi. Escafedeu-se. Todo ficou muito chato. Os treinos. As polêmicas. O var. Os jogadores. Os técnicos. O torcedor. As medonhas entrevistas. Os enfadonhos comentários. Acabou o drible. Ninguém sabe mais quem é o melhor em campo? Quem foi panjango? Quem jogou melhor? Sem contar os chatíssimos esquemas táticos. Antigamente comentavam que as zagas faziam linha burra. Hoje tem linha na defesa, no meio e na frente. E a intensidade, seja lá o que isso for.
O que restou foi um blá blá blá inútil de jogador. “Vamos ver o que o professô tem para falar”. Não dá. Vamos e convenhamos, o quê noticiar? Assim, seu salário foi reduzido em setenta e cinco por cento. Os comerciais desapareceram e as permutas sumiram. Seu programa foi reduzido para apenas cinco minutos de duração.
Camaraaaadas do futebol, são seis e cinco da tarde.
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor, cronista e baixista nas horas vagas; autor do livro Delírios do Isolamento



Comentários