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Tensão sobre o Tom

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • há 2 dias
  • 4 min de leitura

Obrigado pelo ouvido

Por Maurício Simionato


Minha admiração pela música de Jards Macalé vem de longa data. O primeiro show que assisti dele foi no antigo Pátio dos Leões, da PUC-Campinas, em 1992. Memorável. Depois, assisti outras apresentações dele. Mas foi após o brilhante show de 7 de dezembro de 2012, no teatro do Sesc Belenzinho, em São Paulo, com o trio original que tocou no clássico álbum de 1972, que fiz o meu primeiro e único contato direto com Macalé.


O espetáculo comemorativo de 40 anos de seu primeiro disco, "Jards Macalé" (1972), tinha Lanny Gordin (guitarra) e Tutty Moreno (bateria) - músicos que fizeram parte da gravação – além de Sizão Machado (baixo).


Levei três capas de LPs a tiracolo e, após o show, fiquei esperando no canto do palco. Até que um auxiliar dele me chamou para a porta do camarim. Na ocasião, eu havia acabado de lançar meu primeiro livro de poemas (Impermanência – 2012) e decidi levar o livro na sacola, junto com os LPs.

Jards me recebeu bem-humorado e simpático, como sorriso aberto. O LP de 1972 foi autografado pelo trio Lanny, Tutty e Macalé. Tutty brincou, dizendo que nem ele tinha aquele disco original. Os outros dois discos foram assinados apenas por Macalé (“Aprender a Nadar”, o segundo álbum solo, e “Contrastes”, o terceiro solo).  “Maurício, obrigado pelo ouvido”, escreveu Jards, em uma das dedicatórias.


Foi aí que saquei da sacola meu livro de poemas, meio timidamente. Comentei que havia acabado de lançar um livro de poemas. Não para minha surpresa, pois sei da relação dele com a poesia e dos seus amigos poetas, Macalé me pediu uma dedicatória também. Na hora, fiquei sem reação, por uns cinco segundos, processando o que escreveria ao grande Macalé. E escrevi rapidamente: ‘...E tudo mais jogo num verso, intitulado, mal secreto”.


Jards leu e sorriu. Demos um abraço. Fui embora feliz por ter presenciado o quanto ele foi generoso e humilde, com aquele simples gesto. Hoje, fico pensando, onde teria ido parar meu livro com aquela dedicatória. Estaria em sua estante de livros? Estaria perdido em algum sebo carioca? Não importa. O que importa é a obra de Macalé, que ficará para sempre expandindo a consciência de seus ouvintes.


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Jards Macalé na época do lançamento do álbum 'Coração Bifurcado' Foto: Leo Aversa

*

Segue uma hipotética entrevista breve, sagaz e bem-humorada com Jards Macalé, direto do Além da eternidade de suas músicas.

 

URRO! - Pô Macalé, podia ter ficado mais um pouco nessa dimensão. Eu sei que você fez a sua parte, enfrentou perrengues, suportou pessoas escrotas e tudo, mas a gente, que adora a sua obra, já está com saudades.


Jards Macalé - Não quero ficar dando adeus / Às coisas passando, eu quero /E passar com elas, eu quero / E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro...


URRO! - Entendi. Como é a passar para o Além?


Jards Macalé - Passa ao largo / Do nosso corpo / Não quero ficar dando adeus.


URRO! - Cara, qual o segredo de viver e criar como você fez plenamente, sem grilos?


Jards Macalé - Meu segredo é que sou rapaz esforçado.


URRO! - Como vai a vida por aí? Tem visto algo aqui na Terra?


Jards Macalé - Tudo legal. Vejo o Rio de Janeiro / Vejo o Rio de Janeiro.


URRO! - Qual a sensação de morrer?


Jards Macalé - Um long love devagar, quase parando / Em setenta e oito por segundo rotações / Com as mãos frias, mas com o coração queimando.


URRO! - Você viu algum anjo na hora da morte?


Jards Macalé - E eis que o anjo me disse / Apertando a minha mão / Entre o sorriso de dente / Vá, bicho, desafinar / O coro dos contentes / Ô, bicho, desafinar / O coro dos contentes.


URRO! - Mestre, como você chegou no céu (se é que existe céu)?


Jards Macalé - Com minhas calças vermelhas / Meu casaco de general, cheio de anéis... / ...Talvez eu volte / Um dia eu volto.


URRO! - Duro não poder comer aquela feijoadinha por ai?


Jards Macalé - Só vou comer agora da farinha do desejo / Alimentar minha fome pra que nunca mais me esqueça.


URRO! - Como é morrer?


Jards Macalé - A morte é rainha que reina sozinha / Não precisa do nosso chamado /Recado pra chegar...Súbito colapso / Pode ser a forma da morte chegar.

 

URRO! - Uma última pergunta. Não quero atrapalhar a sua paz. Mande um recado aqui prá galera.


Jards Macalé - Cuidado / Há um morcego na porta principal / Cuidado / Há um abismo na porta principal.


 

 

Maurício Simionato é poeta e jornalista. Como poeta, lançou os livros Impermanência (2012) — selecionado pela Secretaria de Cultura de Campinas —, Sobre Auroras e Crepúsculos (Multifoco, 2017) — lançado na Bienal do Livro do Rio/2017 —, O AradO de OdarA (Uma distopia tropical) (Patuá, 2021) e As vísceras das coisas (Patuá-2025), lançado na Flip. O autor também tem poemas publicados em diversas revistas especializadas em literatura, assim como em mais de 15 antologias poéticas. Foi três vezes finalista do Prêmio Off Flip (2020, 2021 e 2023) e, ainda, finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (2019). Como jornalistas tem passagem por diversos veículos de imprensa regionais e nacionais como Folha de S. Paulo e UOL.

 

 

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