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Luz Profana

Oposição artística no Brasil e a 'Revolução Cultural Permanente'

Por Afonso Machado

 

A dialética entre a lâmina e o véu na moderna cultura brasileira não apresenta simplesmente uma história da arte ou da literatura, mas acentua em grande parte a existência de uma histórica oposição artística. Enquanto dimensão fundamental da cultura, a arte atua diretamente sobre o modo de percepção de uma época, na medida em que ela própria consiste também numa força simbólica que age sobre a vida política da mesma época.


Parte significativa da produção literária e artística brasileira, nascida sob o poente da escravidão e abaixo das chaminés das primeira fábricas, tornou-se a lâmina que rasga o véu da cultura – se o véu pode ser aqui a imagem que Karl Marx utilizou para representar a ideologia dominante colocada sobre os olhos da população, a transgressão e a contestação social, enquanto aspectos centrais da criação artística do nosso tempo, fizeram da arte a lâmina que rasga pela violência da experiência estética o próprio véu. É sob este corte político, desferido pelas tendências mais avançadas da arte moderna brasileira, que o presente estudo foca suas atenções.


O caráter revolucionário da arte brasileira é buscado aqui num recorte histórico que abrange as décadas de 30 e 40, período este marcado pela politização do Modernismo e pelo acirramento das tensões sociais do país. Situam-se a reflexão e a produção artística do Brasil em suas particularidades históricas, como partes de uma espécie de “geopolítica da estética”: um amplo e contraditório movimento internacional não fez apenas com que a arte e a literatura entrassem em crise, mas acenou mais de uma vez numa direção que condenava a sociedade burguesa, seja em seus fundamentos artísticos e morais, seja em sustentação econômica e política. A oposição artística torna-se um imperativo na esfera da cultura, e também parte integrante de um movimento revolucionário.


O fato de o Brasil não ter atravessado uma revolução socialista inverteu consideravelmente a situação da arte e, consequentemente, as tarefas da militância cultural: a contribuição da arte para a construção de uma realidade política revolucionária foi concebida no Brasil de acordo com inúmeras contradições sociais. Um problemático percurso histórico desenhou situações peculiares para a arte militante no Brasil:


- Abismo entre Modernismo brasileiro e a arte do movimento operário durante o início do século 20;


- Crise econômica de 1929, afetando a economia cafeeira (que sustentara o modernismo paulista durante os anos vinte) e também momento em que se foi possível observar a emergência de correntes artísticas radicais que se aproximaram do campo político da esquerda;


- Politização do Modernismo em 1930 e uma suposta dicotomia entre arte revolucionária e arte moderna;


- Ausência de liberdade na atividade artística “de esquerda” durante os anos 30, devido à repressão do governo Vargas e à própria política obreirista do PCB (Partido Comunista Brasileiro), que cerceava a criatividade;


- Oficialização do Realismo socialista no pós-guerra enquanto modelo estético imposto pelo PCB e a oposição a ele através do conceito de arte revolucionária independente.


É a partir destas situações conflituosas que propomos a tentativa de problematizar, através do debate estético, o conceito de arte revolucionária. Esta ultima expressão, sujeita a equívocos e distorções políticas de toda espécie, é aqui resgatada a partir dos níveis de desenvolvimento histórico preconizados pela arte moderna e suas relações com a revolução proletária.


Tais relações não se satisfazem com os limites “fronteirísticos” da ideia de Estado-nação e pela submissão da arte aos ditames de uma política cultural partidária. O transporte internacional de diferentes estéticas e suas mais variadas apreensões na realidade nacional geram formas de oposição artística que não se fazem como correria de transmissão de um partido político, mas como elemento vital que se insere de modo independente no projeto político revolucionário.


O conceito de revolução permanente, teorizado por Leon Trotsky, torna-se a mais bem acabada concepção política que reivindica enquanto força independente a presença de uma oposição artística no Brasil. O movimento combinado e desigual da revolução, que se inicia nacionalmente, segue para o campo internacional e, finalmente, resolve-se na arena mundial, possui um correlato cultural. O permanentismo, que contradiz as supostas etapas históricas do desenvolvimento econômico de um país, que projeta a revolução a partir da liderança operária, não se restringe aos âmbitos político e militar.


A concepção trotskista da revolução traz para o plano da cultura a luta permanente contra o conformismo e o equilíbrio social. O combate à moral da classe dominante requer experiências estéticas que despertem uma sensibilidade rebelde e lancem uma revolta permanente contra o gosto artístico e as convenções sociais. Ao trotskismo não cabe erigir um modelo estético invariável, mas abranger uma pluralidade de correntes artísticas modernas empenhadas na luta contra a cultura dominante.

Elementos da revolução cultural permanente no Brasil (utilizamos aqui a expressão “revolução cultural permanente” sem qualquer tipo de ligação com a revolução cultural maoísta ocorrida na China dos anos sessenta; enfatizamos que a revolução cultural é uma dimensão inerente à própria revolução permanente) constituem-se historicamente do modo contraditório: das tendências radicais do Modernismo em torno da Antropofagia e da difusa influência do Surrealismo durante o final dos anos 20, chegando à reinvindicação da modernidade artística na práxis da arte social, durante os anos 30.


Patrícia Galvão, Mario Pedrosa, e, contraditoriamente, Oswald de Andrade, recorrentes neste estudo, estão entre os principais nomes que defendem a conjugação entre arte moderna e arte revolucionária. Esta conjugação é pensada mediante a modernização conservadora e autoritária do governo Vargas, período este em que se realizaram intensos debates artísticos e ocorreram fenômenos como o chamado Romance de 30.


Patrícia Galva: musa do Movimento Antropofágico - Foto: Reprodução


As implicações históricas desse processo a um só tempo cultural e político acabam por denunciar, no Brasil e no mundo, a dissociação realizada pela política cultural do stalinismo entre as correntes estéticas modernas e a arte revolucionária. Portanto, a tentativa de reabilitarmos historicamente o conceito de arte revolucionária implica em uma crítica ao alinhamento artístico do realismo socialista – orientação estética que caracterizou o controle policialesco da política stalinista sobre a atividade artística e literária.


Dentro da ótica do Realismo socialista, importado diretamente da então URSS pela política cultural do PCB, caberia ao artista/escritor seguir um modelo sem variações estilísticas, que enaltece pelo recurso da propaganda os “feitos políticos de Stalin” e seus correspondentes organizacionais no mundo.


A convergência entre vanguardas artísticas e socialismo no Brasil é apresentada através de uma constelação intelectual entre Mario Pedrosa, Patrícia Galvão, Leon Trotski e André Breton. Estes nomes implodem os cadeados da cultura tanto no período entreguerras quanto no pós-guerra. A postura autônoma e combativa, que em 1938 fez com que Breton e Trotski redigissem na Cidade do México o Manifesto Por uma Arte Revolucionária Independente, exprime a coragem intelectual de afirmar a necessidade de a arte encarnar um gesto radical contra a sociedade burguesa, e impede, ao mesmo tempo, que a própria arte se torne ilustração de um determinado centro de poder político.


Se este apelo na conjuntura política pré-Segunda Guerra Mundial (1939-1945) alertava sobre os perigos encarnados no fascismo, no stalinismo e nas ilusões da democracia burguesa, acreditamos que sua vitalidade programática estende-se ao pós-guerra brasileiro, pois será este o momento em que o Realismo socialista faz morada em parte da produção literária e artística brasileira. As intervenções de Mário Pedrosa e da escritora Patrícia Galvão na crítica ao Realismo socialista, revelam em ambos uma trajetória intelectual que desde a década de 30 choca-se com as limitações do stalinismo.


Evidentemente, não ambicionamos aqui esgotar os fatos que dizem respeito ao que seria a arte revolucionária no Brasil e tampouco nos determos em detalhes biográficos de alguns de seus protagonistas. Se optamos aqui por destacar as figuras de Pedrosa e Pagu, é porque estes acabam, pelos seus acidentados percursos estéticos/políticos, revelando fontes fecundas de articulação entre a modernidade artística e a luta pelo socialismo. É neste sentido que destacamos suas presenças e suas relações contraditórias com outros nomes emblemáticos da vida artística brasileira, como o escritor Oswald de Andrade, que viveu o paradoxo existencial entre vanguardas estéticas e o stalinismo, e o escritor Jorge Amado, que se tornou figura exponencial do Realismo socialista no Brasil.


Mário Pedrosa: defensor da arte abstrata no Brasil - Foto: Reprodução


Observar a atenção que Mário Pedrosa e Patrícia Galvão deram à tese de Breton e Trotski significa vislumbrar um apelo que chega até nós a partir de um canto escuro, silencioso e silenciado, em que estas vozes marginalizadas adquirem valor político indispensável para resgatarmos as implicações libertadoras da arte. Perante a desastrosa política cultural do PCB, ambos revelaram a existência de uma espécie de oposição artística de esquerda no Brasil. A independência revolucionária da arte manifestou-se através de inúmeras iniciativas de ambos, cabendo destacar muito especialmente a crítica literária de Pagu no periódico Vanguarda Socialista (1945-1948).


Espera-se que estes fatos, praticamente negligenciados pela historiografia brasileira, sejam aproveitados pelos jovens de esquerda empenhados na práxis da arte.


*O texto reproduzido acima foi publicado no Livro Modernidade e a Estética do Credo Vermelho – Sobre o conceito de arte revolucionária no Brasil (1930 – 1949) lançado no ano de 2016 pelo selo Edições Iskra.

 

Afonso Machado é historiador e militante da cultura. Além de pesquisar as relações entre arte e política no mundo contemporâneo, trabalha como professor de história, como articulista em periódicos da imprensa independente. Cofundador do Boletim Lanterna – blog de Arte Revolucionária – e colunista do Esquerda Diário, atua apaixonadamente pela necessidade do debate estético no campo da teoria marxista.

 

 

 

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