Phósphoro
- URRO
- 21 de dez. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 27 de ago. de 2022
Recontos Virais n. 1 e n. 4
Por André Prada

Aberto (só para viagem)
“O tempo pode me mudar e eu não posso enganar o tempo”
David Bowie
A velha máxima "tempo é dinheiro", envelheceu. O tempo agora é outro, dilatou-se, a ponto de extrapolar as 24 horas diárias (para mais ou para menos, sabe-se lá), se tornou imensurável, impalpável, irreal e, bem...incorruptível. Dinheiro já não o compra mais. Precisamos aprender a conviver sob o jugo de nosso novo patrão.
Talvez o tenhamos menosprezado, esnobado, e agora, dependemos dele para nos libertar e retomar nossas surradas rotinas em torno do nada. Ele nos aprisionou. A esperança é a penúltima que morre e a nova máxima é "quem espera, desespera". Fique em casa, lave as mãos, tussa, espirre, respire, pire... mas longe de mim, mantenha a distância necessária para preservar suas neuroses das minhas. Nosso contato pode ser fatal.
Imerso em suas divagações filosóficas, sargento Ledo Aguiar estaciona a viatura policial defronte a um prédio numa ruazinha estreita de paralelepípedo. Pensando bem, até que não era tão mal servir a corporação policial em tempos de peste. Quase não acontecia nada, e quando acontecia eram casos como esse que agora sua equipe tentaria resolver. Uma mulher surtara com as recentes notícias sobre a pandemia e se trancara em seu casulo se recusando a sair, ficando até mesmo sem prover seus próprios víveres. Os vizinhos estranharam e se reportaram ao síndico, um velho jornalista aposentado que se dedicava atualmente a escrever contos, que acionou o 190 a contra gosto pois não ia com a cara da mulher. Bem, eu que recebia meu soldo para prender pessoas, lá estava para tentar resolver o pepino dessa maluca e soltá-la de seu cativeiro. Realmente eram tempos estranhos. De qualquer forma, era melhor estar nas ruas do que em casa, o clima por lá andava carregado de tédio e de medo. Sim, eu era um homem da lei e tinha a sorte de poder estar trabalhando livre nas ruas. Meu tempo era outro.
Ao chegarmos, Henrique Palhares, o tal jornalista síndico já me esperava na entrada. Era um sujeito simpático, tipo da pessoa que dá vontade de sentar em um balcão sujo e gastar um tempo trocando umas ideias enquanto se molha a goela. Talvez o convocasse para prestar um depoimento, apenas para poder tirá-lo de lá por umas horas. O sujeito tinha cara de quem precisava ir a algum boteco urgentemente, assim como um gripado nos dias de hoje precisa de um hospital. Mas antes teria que resolver o caso da doida muito bem varrida (Henrique me disse que ela tinha mania de limpeza), nem de longe imaginando o que estava por vir.
Ai Dinorá, Dinorá
“O primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude, foi a dúvida”
Carl Sagan
A volta àquela pequena, simpática e nostálgica rua de paralelepípedos me despertou memórias insuspeitadas. Novamente acionavam a R.O.L.A (Rondas Ostensivas Ledo Aguiar) por causa daquela mulher com mania de limpeza. Desta vez, o motivo era mais nobre, havia uma suspeita de morte por suicídio no prédio (sempre acreditei haver uma certa nobreza no suicídio) e precisavam de nossa cooperação para poderem entrar no apartamento da possível vítima que não vinha mais atendendo as chamadas pelo interfone e tampouco recolhendo as correspondências que iam se empilhando em sua porta.
Fui atendido mais uma vez pelo jornalista boa gente que nos guiou até o andar da pobre coitada.
- Muito trabalho, Sargento Ledo? Devem estar ocorrendo muitos casos como este nestes tempos de peste, não?
- É, as pessoas andam impacientes, parece que o medo anda vencendo o vírus. Há quase mais casos de mortes por suicídios do que pela doença em si. Quem manda não ter fé em porra nenhuma? Cientistas, medicina, Deus, macumba, videntes, qualquer teoria que explique o absurdo de estarmos aqui...
- O senhor acredita nesses troços, Sargento?
- Eu? Bem... podemos conversar sobre isso em outro momento.
Fé, quem era eu para falar em fé, de onde diabos eu tirara aquela idéia maluca?
Fé... bem que tentaram me catequizar na infância. Me lembrava bem de Dona Dinorá, aquela velhota barbuda com uma verruga na ponta do nariz, tentando me introduzir ao mundo ilusório da bondade naquelas insuportáveis sessões de catecismo. Saía apavorado delas, achando que iria arder nos fogos do inferno toda vez que xingasse algum amigo no futebol de rua, ou quando tivesse convulsões febris ao folhear um outro tipo de catecismo em voga na época, as historietas carregadas de erotismo de Carlos Zéfiro, em busca de prazeres onanistas; ou ainda se tomasse umas cervejas fumando os meus primeiros cigarros soltos em longas matinês perdidas nos fliperamas da vida... Descobri cedo, que esse papo de fé não me levaria a lugar algum.
Ao arrombarmos a porta do apartamento deparamos com a cena nauseante: um corpo em estado de putrefação com vários litros de todos os tipos de desinfetantes ao redor. A louca se matara ingerindo detergentes de toda sorte de cores e em larga escala. De sua boca, agora, pendia uma baba elástica, multicolorida, espumosa, em diferentes tons de azul, verde, amarelo e branco, das mesmas cores de nossa bandeira nacional e das manifestações mais abjetas destes tempos sombrios. A infeliz se higienizara completa e definitivamente... e de uma maneira pouco nobre, talvez.
Eu e o jornalista intelectual nos entreolhamos:
- Carajo man! balbuciou, embasbacado, o periodista.
- Conhece aquela frase do Stendhal, que despertou a inveja em Nietzche por seu ateísmo contundente, professor?
- Acho que não...
- Ele diz que a única desculpa de Deus é a de não existir
- É, boa frase, bem razoável mesmo... Aceita um drinque, Sargento? Garanto que posso lhe servir desinfetantes de melhor qualidade. Aproveito e lhe conto o que ouvi sobre a fé, de uma atendente do CVV chamada Dinorá com quem falei ontem à noite para fazer um frila sobre esses altos índices de suicídio que andam acometendo pessoas que... bem... não têm fé.
Precisava mesmo de um drinque, não tive como recusar. Sabia que seria mais uma daquelas viagens ao fim da noite, iria chegar em casa tarde da madrugada novamente... ai Dinorá, Dinorá...
André Prada é médico e cronista.
Foto: paciente deitada no chão do Hospital Mental Estadual de Cleveland, Ohio em 1946 - Mary Delaney Cooke/Corbis via Getty Images - via https://www.zona33.com.br/2017/11/30-fotos-antigas-sanatorios.html
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