Phósphoro
- URRO
- 1 de out. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
Carvão
*Primeira tentativa
Por Cecília Gomes

Te conheci pelo traço em tempo de redes sociais. Uma amiga compartilhou uma obra que você pintou para ela e eu me fixei nos contrastes de preto e branco, nas formas limpas e sujas sugeridas pela minha mente igualmente limpa e suja a encontrar poses de garotas de programa, stripers, cenários abstratos, ruas, becos, fogo, fuga, giro e caminhos. Guardei comigo a sensação e segui te seguindo virtualmente.
A gente se conheceu pessoalmente numa manifestação. Eu publiquei na rede social um convite para desinaugurar o teatro Castro Mendes e você esteve lá. Com tintas preta e branca, deixou os fantasmas, que assombram a cultura de Campinas e costumam fechar teatros para lá morarem, presos aos tapumes que cercavam a obra eterna. Depois disso, a gente se viu em uma ou outra reunião pra discutir política cultural, mas ficamos por aí.
Um dia, ouvindo e dançando Walk on The Wilde Side na sala de casa, senti que esta linha invisível estava nos conectando e nos convidando a um passeio em conjunto. Eu queria viver muita coisa ao mesmo tempo. Queria criar com um monte de artistas e de repente a poesia de Lou Reed sussurrou para mim: dê um rolê pelo lado selvagem, mas escolha bem suas companhias. Há de ser autêntico e belo este caminho. E lá fomos Ava e eu ao seu encontro.
Marcamos na praça do CCC - Centro de Convivência Cultural. Você estava sentado em um banco e tinha nas mãos uma garrafa de vinho metida numa sacola. Achei engraçado, mas não comentei - afinal, não tinha intimidade ainda…parecia um encontro rolando na Austrália, onde não se pode beber assim descaradamente em público à luz do dia, nem à noite.
Foi uma conversa franca e direta. Falamos sobre o projeto, materiais, cenário, concepção, combinamos valores e depois brindamos. Depois disso, a gente se tornou Gens. gensSELVAgens a passear por caminhos totalmente novos para nós.

E lá fomos nós para a “sala” de ensaio. Um barracão em de um centro comunitário em Barão Geraldo que resistia ao abandono. Descobri um artista que além da genialidade de suas criações, se jogava com a gente a rolar no chão, a fazer intensos exercícios de corpo e voz com disciplina e dedicação.
Depois do ensaio, a gente emendava a gandaia pelos botecos de esquina no Centro, Vila Industrial e Barão Geraldo. Era parte do processo. E, vez ou outra, você declamava o mantra: “Ó gênios do teatro amador”, desenrolando falas com réplicas e tréplicas hilárias. Fizemos muitos rituais, evocamos escorpião perto das quebradas do túnel de acesso ao mercadão. Brigamos colocando o pior de nossos egos em guerra, reconciliamos, apresentamos nossa criação. Vivemos aquilo que queríamos viver. Com a mesma intensidade e alegria com a qual você encontrava um toco de carvão no meio de um churrasco.
Você falava de suas visões de anjos em sua história com o coração, da cirurgia. Alguns deles foram pintados diante de nós em sala de ensaio. Vimos o carvão encontrar os poros de paredes, nossa pele e papéis pelo seu traço e virarem arte sublime. Aspiramos você, inspiramos você. Meu corpo foi suporte para sua arte. Efêmera criação. O tempo da vida. Tal qual carvão em festa com Fábio de Bittencourt.

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¨* Texto em memória de Fábio de Bittencourt, inspirado na convivência intensa que tivemos e algumas de suas publicações no Facebook:
Publicação - "Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, VIVER ultrapassa qualquer entendimento." Clarice Lispector
Publicação - “sabe qdo vc para no churrasquinho do mercado e vê um toco de carvão, vai p poste. R.Ferreira Penteado.”
Cecília Gomes é jornalista e atriz
*Fotos de Oliveira França
Sobre Oliveira França
Fotógrafo sociólogo e arte-educador. Trabalha, geralmente, de forma colaborativa, com projetos artísticos e/ou educacionais em fotografia.
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