Monólogos Ácidos
- URRO
- 21 de jun. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 30 de jun. de 2022
A política, a mentira e os mentirosos
Por Marcel Cheida
Ou como a enganação é um método de conquista e manutenção do poder

A mentira é feiticeira envolvente e até determinante. Sem ela, a humanidade não existiria com tantas criações e narrativas. A mentira é a mãe de todos nós. A verdade, ora, não passa de um efeito colateral. Pensar essa dicotomia entre verdade e mentira ou mentira e verdade é ser reduzido à incapacidade de ver a contraditória beleza da vida, do mundo.
O universo sempre foi mentiroso. Desde Galileu, ou dos gregos, a observação sobre o cosmo resultou em mentiras. Ptolomeu que o diga. Ou mesmo, a Igreja Católica ao defender a terra plana e como centro do mundo. As mentiras, aliás, inexistiam como as compreendemos no mundo antigo, entre os gregos e os romanos, ou entre os hebreus.
Mentir é uma condição humana. Está lá no Gênese, quando Yaweh pergunta à Eva e a Adão o motivo de terem comido a fruta da árvore proibida. E ambos mentem. E continuamos a mentir, numa história carregada de enganos ou farsas. E até as verdades estão nesse meio, nem sempre predominantes.
A mentira é uma palavra desacreditada, vilipendiada, desmoralizada, mas presente no dia a dia revestido da hipocrisia afeita à condição humana. Não mentir é não afirmar a própria superioridade de homem e mulher, hoje também de trans e outros perfis identitários.
Quem não mentiu ou mente, invariavelmente? Chega atrasado no trabalho e diz que o ônibus demorou. Chega atrasado na reunião e diz que o pneu do carro furou. Chega atrasado e dá uma desculpa qualquer.
Bem, há outras tantas mentirinhas do dia a dia, em qualquer relação social. E, na política, a mentira adquire outro status. A era das fake news transmutou os velhos boatos, rumores e fofocas embaladas digitalmente, com aparência de notícia, numa combinação multimídia, texto, imagem, áudio e vídeo. E no subterrâneo da internet, o deepfake nas trilhas chan.
Verdade e mentira se hibridizam, ou são transmentira ou transverdade, uma não-binariedade condicionada pelas causas e finalidades acometidas de ilegitimidade em regimes democráticos fragilizados, instáveis e submetidos à ditadura das narrativas.
O mundo, portanto, é cada vez mais transparentemente opaco. A tessitura das relações sociais polarizadas desconstrói os partidos políticos e as instituições de Estado, submetendo-os ao vendaval do imediato sem futuro. No Brasil, desde 2013, com as jornadas de junho, combinadas com a recusa de Aécio Neves (PSDB) em reconhecer a vitória de Dilma Rousseff (PT) em 2014, a onda corrosiva sobre as instituições e sobre o futuro se expandiu com a eleição e o (des) governo de Jair Bolsonaro (PL – hoje), que, de fato, é administrado pelos generais e coronéis reformados ou da reserva.
As narrativas e a ficção políticas são o método. Ferramentas que revivem a tal comunicação de massa da década de 1930, com um novo vetor: as transmissões ao vivo pelos canais e redes digitais. Sem contraditório, sem contraponto, sem a diversidade de questões ou perguntas que contribuem para confirmar que o rei está nu. A mentira, a ficção, o dizer descompromissado constituem o discurso presidencial e de seus apoiadores. Goebbels deve estar lacrimejando de alegria ao ver materializadas as leis da propaganda política, obra confeccionada no ambicioso e criminoso projeto nazista.
Mas, há um recurso de alta especialização: o clichê. A frase feita, que se reproduz pelas redes sociais mecanicamente. Saramago disse que o twitter um grande passo regressivo ao grunhido. A fragmentação discursiva e as frases rasas embaladas pelos algoritmos se reproduzem exponencialmente. Atingem a todos aqueles que estão com os olhos e ouvidos vidrados na tela do celular ou de outro dispositivo. Pensar, ora, para que pensar?
A astúcia mentirosa tem uma referência história. Desde a decisão de D. João VI, então regente de Portugal, quando negociava tanto com os ingleses quanto com Napoleão Bonaparte, a quem entregou boa parte do ouro extraído do Brasil para impedir que os franceses invadissem Portugal. Mas, era blefe e o regente deixou a península para chegar com a corte, protegida pela marinha inglesa, no Brasil.
Essas mentiras, porém, são parte das estratégias do poder. São consideradas legítimas.
Mas, ao longo da história, tantas mentiras, disfarces e fraudes foram protagonistas de rupturas ou de preservação do poder. Lembre-se da Proclamação da República, um golpe ao qual o povo assistiu bestializado, conforme as palavras do republicano Aristides Lobo, ministro do Interior por quatro meses no gabinete provisório instalado logo após o 15 de novembro. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada.”
A frase sintetizou o cenário golpista, sem participação popular, para pôr ao chão o governo imperial fragilizado, carente de sustentação, num declínio marcado pelos elevados gastos com a Guerra do Paraguai e, depois, com a abolição dos escravos, cujos senhores queriam mas não conseguiram ser indenizados pela monarquia.
Uma semana antes de tirarem o marechal Deodoro de casa, com pijama, para tomar o governo, D. Pedro II participava do baile na Ilha Fiscal, em homenagem à marinha chilena. Ao entrar e caminhar pelo salão, tropeçou num tapete, e teria dito: “"O monarca tropeçou, mas a monarquia não caiu". Alheio à fragilização do governo e do gabinete, D. Pedro II expressava um poder que já não existia. Um poder de mentira.
Ou seja, em vez de revolução tivemos uma proclamação, após um tropeço de um monarca apaixonado pelo Brasil, mas trôpego.
A farsa
O assassinato de João Pessoa, em julho de 1930, numa confeitaria no Recife, se transmutou em crime político. João Dantas atira e mata João Pessoa, adversários políticos. A razão, porém, foi passional. Dantas, jornalista, se sentiu ultrajado por João Pessoa, então governador, pela polícia ter invadido sua casa, apreendido documentos diversos, entre os quais cartas amorosas trocadas com a professora Anaíde Beiriz. Era a desonra. O episódio foi reembalado pelo getulismo, e intensificou a oposição à República Velha e ao resultado da eleição, permeada pela corrupção das listas, que deu vitória à Júlio Prestes. Aí, a Revolução de 1930.
Mais tarde, em 1937, Getúlio demonstrava simpatia aos regimes nazifascistas e contava com o apoio dos militares. Entre eles, do então capitão do Exército, Olímpio Mourão Filho, que colou um artigo publicado na França, para denunciar o Plano Cohen. Divulgado nas emissoras de rádio, no Distrito Federal, o falso plano indicava a ameaça da infiltração comunista no País, nos moldes da Intentona de 1935. No dia 10 de novembro de 1937, Getúlio ordenou e a Polícia Militar tomou o Congresso Nacional. Começava aí os anos do Estado Novo, a ditadura getulista. À noite, depois da farsa do artigo, da ruptura com o regime constitucional, Getúlio e família foram jantar num restaurante.
Em 1945, o general Góes Monteiro, ex-ministro da Guerra, denunciou a farsa do Plano Cohen e afirmou que não passou de um artifício usado para o regime ditatorial, no qual o parlamento, em todos os níveis da federação, ficou calado, fechado.
O golpe de 1964 foi fermentado, também, pela farsa do discurso em torno de um João Goulart sindicalista, que contava com o apoio dos comunistas. Em meio à Guerra Fria, os Estados Unidos deram os sinais de apoio à derrubada de um governo eleito democraticamente. Hoje, conforme vários documentos publicados por historiadores, sobram evidências da mentira sobre Jango e sobre o plano da tomada comunista-sindicalista do poder no País. A narrativa em torno da ameaça comunista, à época, encontrou o agora general Olímpio Mourão Filho no comando do golpe, quando deixou Juiz de Fora, MG, com soldados da Divisão de Infantaria da 4ª Militar, na madrugada do dia 1º de Abril. A data, porém, adotada foi 31 de março, para não ser embalada pelo dia da Mentira. Ou seja, 31 de março sempre foi 1º de abril.
Durante o regime militar, a tortura corria solta nas delegacias e nos quarteis. Os “inimigos internos” eram caçados, presos, torturados e, muitos, mortos. Mas, o governo federal divulgava notas oficiais e discursos negando a tortura. A farsa se tornava sanguinolenta. O poder do Estado, com todas as forças armadas, era incomparável à organização e ao poder dos rotulados como inimigos do regime.
Riocentro
Outra fraude. Descontentes com a abertura do regime, sob a presidência do general João Baptista de Oliveira Figueiredo, militares e agentes do sistema de informação, planejaram a instalação de bombas no Riocentro, durante um show para comemorar a véspera do Dia do Trabalho. Era abril de 1981. Mais uma vez, os avisos para impedir a distensão política. Agora não era uma carta como o Plano Cohen. A intenção era explodir as bombas e acusar os comunistas de tê-las instalados, para, então, justificar, mais uma vez, o fechamento do regime.
Mas, as bombas deram chabu. E uma delas explodiu no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, acompanhado de um capitão do Exército e agente do DOI (Destacamento de Operações de Informações), Wilson Luiz Chaves Machado, num Puma GTE, cinza, carro dos boys à época. O sargento morreu com a explosão, mesmo com a experiência de sapador, militar especializado em bombas.
O episódio teve uma sucessão dramática, na busca de saídas para o governo explicar o que aconteceu. Foi instaurado o Inquérito Policial Militar, cujo primeiro responsável, o coronel Luiz Antonio do Prado Ribeiro, agiu de modo a pretender encontrar a verdade do episódio. Por isso, foi destituído e substituído pelo coronel Job Lorena de Sant’Anna, que distorceu, criou e inventou a conclusão da “investigação”. E o resultado foi mais ou menos isso: “À vista das conclusões das diligências realizadas ao longo deste IPM, detalhadamente relatadas no item 3, não há como inculpar os militares ocupantes do carro sinistrado.”
Além disso, o relatório apontava o sargento Wilson como alguém que estava cumprindo a missão de coletar informações no Riocentro. E que havia “significativa movimentação de elementos radicais de esquerda” naquele ambiente. A ameaça esquerdista, comunista, era realimentada para impedir a abertura rumo à democracia e eleições livres.
Basta dizer que o coronel Job Lorena foi promovido a general de Brigada. E até hoje o Exército mantém como verdade aquele relatório. Mentira para outras mentiras.
Narrativas
Em 2013, as jornadas de junho começaram com a reivindicação em torno do preço das tarifas dos transportes públicos. O movimento tomou conta das capitais e das grandes cidades, ao incorporar a manifestação contra o governo da presidenta Dilma Rousseff. Em 2014, Aécio Neves acusa a possível fraude na eleição. Nada foi comprovado. Em 2018, a campanha eleitoral contou com a maciça propaganda de narrativas embaladas pelas fakenews. Mamadeira de piroca, ameaça comunista, a Ursal e o Foro São Paulo, as escolas e universidades onde a droga, o sexo livre, a homossexualidade entre outros comportamentos moralmente condenados pela tal família conservadora, compuseram os discursos em favor do candidato Bolsonaro. Ah, sem esquecer nessa onda o regresso à terra plana medieval.
Deu no que deu. O desafio, agora, é como afastar essa trama.
Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.
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