Monólogos Ácidos
- URRO
- 1 de out. de 2021
- 9 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
Tensão e falta de tesão
Por Marcel Cheida

Foi na primeira semana de setembro que tentei finalizar esse texto. Maurício me cobrava, como um sempre atento editor, para evitar o atraso da publicação. A semana, contudo, não era a primeira de setembro; era uma semana, a quinta, de agosto, mês dramático na história política do País.
A convocação dos apoiadores do presidente Bolsonaro para demostrar musculatura no dia 7 da Independência gerou uma tensão nunca vista nos últimos tempos. Talvez desde o processo de cassação do mandato do presidente Collor de Mello, o País não vivia um período tomado pelas ameaças de golpe e ataques ao regime democrático, que, de fato, são afrontas à Constituição Federal.
Tentar apurar e interpretar a dinâmica do processo político nesses dias foi desafiador para qualquer cidadão, muito mais ainda para os jornalistas que cobrem Brasília e tentam entender o que lá acontece. Primeiro: as entulhadas redes digitais bolsonaristas com ataques dos desafetos e as mensagens de convocação para a presença nas ruas e a derrubada dos ministros do STF. Segundo: os discursos de Bolsonaro na terça-feira. O discurso matinal, em Brasília, ouvido e ladeado pelos generais, entre eles Braga Netto, Defesa, e Mourão, vice-presidente. O discurso vespertino, na Avenida Paulista, onde chamou, injuriosamente, o ministro Alexandre de Moraes de “canalha”. Terceiro: a presença de milhares de apoiadores nas capitais, muitos com faixas pedindo a intervenção militar e o fechamento do STF. Em Brasília, o tal “povo” bolsonarista ensaiava invadir o Congresso e o prédio do STF.
Na quarta-feira, dia 08, depois das manifestações do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP, Al – ah, esse partido), que ensaboou a promessa de eleições em 2022, com urnas eletrônicas, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM, MG), que decidiu suspender as atividades legislativas a partir do dia 08/09, para tentar aliviar a pressão, houve o discurso do presidente do Supremo, ministro Luiz Fux. Da leniência de Lira, da pretensão democrática de Pacheco, até o incisivo Fux, no dia 09 o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, devolveu os insultos que recebeu nos últimos meses de Bolsonaro.
No mesmo dia 09, o presidente arregou. Pediu as bençãos ao presidente Michel Temer (PMDB, SP) para ajudá-lo na contenda com o desafeto, o ministro Alexandre de Moraes. Do encontro foi parida uma nota bastarda, fruto de um estupro por meio do qual Bolsonaro atacou o STF numa orgia assistida por milhares de apoiadores em praça pública.
Nos dias 09 e 10, o silêncio dos militares realçavam a dissimulação. Na noite de quinta-feira, 09, Bolsonaro atenuava, para os seguidores, o tom da nota. Pedia tempo. O Globo publicava no portal, no dia seguinte, que os militares não engoliram os termos da nota, pois o recuo em relação a Alexandre de Moraes não contou com nenhum ganho em favor do presidente. Ou seja, Bolsonaro injuriou, sim, o ministro e afrontou o STF, mas ao tentar um sinal de aproximação frente à paralisação dos caminhoneiros em 14 estados, a iniciativa rachou os apoiadores.
Logo em seguida, o presidente tentou amenizar o clima com declarações dirigidas aos bolsonaristas, numa tentativa que reafirmava o foco nas eleições de 2022. Ou seja, entre trancos e barrancos, entre dissimulação e agressões aos desafetos, Bolsonaro continua o que sempre foi. Enquanto isso, os índices socioeconômicos despencam e passam longe das preocupações do Palácio do Planalto. A não ser numa pequena frase usada pelo chefe e comandante das Forças Armadas ao se justificar para os caminhoneiros parados: os bloqueios iriam afetar os mais necessitados com o desabastecimento. Mais nada. Ou seja, as tensões vão ser o instrumento central das táticas diversionistas do bolsonarismo, pois alimentam medo e aterrorizam, mas a nota reverteu parte disso tudo ao frustrar parte dos apoiadores e motivar gozações, memes nas redes e descrédito maior sobre os atos do capitão.
Esse é o jogo do Bolsonaro. O recuo tático, com Temer no script, foi gerado por tensão quase incontrolável motivada pelas reações dos ministros do Supremo e pela falta de adesão das forças militares, inclusive as PMs, num movimento mais decisivo em favor de medidas inconstitucionais.
E vamos assim até outubro de 2022. Isso, se as deusas ou os demônios da imprevisibilidade não atuarem para ou impedir da eleição ou para derrubar Bolsonaro antes.
Política e cultura
O (des) governo Bolsonaro implantou a política (se é que se pode usar esse termo) da inculturação. A negação da cultura como conjunto de produções, plurais, de sentidos dados às coisas materiais e imateriais, que expandem a capacidade do humano em entender a si mesmo e aos atributos da espécie.
Sérgio Camargo, nomeado presidente da Fundação Cultural Palmares, é companheiro de jornada da ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que ressignificou Jesus Cristo na goiabeira. Apesar do sofrimento enfrentado pela violência que sofreu na infância, Damares galgou a trajetória como fiel da Igreja do Evangelho Quadrangular e amalgamou a crença religiosa com a política. Com diversas turbulências na carreira, mesmo sem o reconhecimento do título de advogada, ou mesmo da titulação acadêmica de mestre, subiu as escadas do bolsonarismo pela retórica da fé.
Camargo, numa trilha bem diferente, formou-se na Puc SP e trabalhou no jornalismo em redações de renome, como a do Estadão, Folha, Rádio Eldorado e também a CBN. Ou seja, encontrou e conquistou oportunidades para entender a complexidade do mundo.
Nas decisões ditas estratégica, Bolsonaro criou a Secretaria da Cultura no Ministério da Cidadania e, depois, a incluiu no Ministério do Turismo. A falta de lógica nesse processo evidencia a ausência de um sentido crítico sobre o significado de cultura e de turismo. Este é devedor daquela. A cultural virou um descarte do (des) governo, sensível demais às críticas sobre a incompetência em entender a pluralidade e a diversidade do pensamento expresso nas manifestações artísticas, literárias nas variadas modalidades produzidas pelos segmentos mais variados da sociedade. Por exemplo, o funk e o hip hop não devem nem chegar perto de Camargo e Damares.
Roberto Alvim, afastado da Secretaria Especial da Cultura, pela manifesta adoração nazista, somou-se a esse rol de sujeitos impermeáveis ao pensar. Regina Duarte é outra expressão desse universo herético agressivo a qualquer sentido crítico e, portanto, legítimo, da ação cultural.
Dois termos foram embalados no rol do preconceito bolsonarista: intelectual e culto. Tal percepção e convicção permeia os discursos dos agentes de Estado no controle dos orçamentos das áreas que têm a obrigação constitucional da gestão cultural. Desde 2010, o maior valor empregado para o Ministério da Cultura foi em 2013, R$ 5,56 bilhões. Em 2019, Bolsonaro extinguiu e alterou o status da Cultura de ministério para Secretaria Especial, hoje nas mãos do ator Mário Frias, na pasta do Turismo. E o orçamento previsto para este ano foi de apenas R$ 1,77 bilhão. O valor equivale ao gasto de apenas R$ 12,00/ano por brasileiro registrado como eleitor no TSE. Ou seja, apenas R$ 1,00/mês por brasileiro.
Os números evidenciam a redução drástica de investimentos, uma vez que a maior parcela desse dinheiro é destinada ao pagamento de pessoal. Agrava-se o cenário pela redução do PIB nos últimos anos. Em 2015, ano do maior orçamento histórico para a Cultura, o PIB brasileiro registrava R$ 5,9 trilhões ou US$ 1,5 trilhão. Em 2020, o PIB caiu para US$ 1,3 trilhão, num derretimento que afeta a arrecadação tributária e, portanto, o orçamento da União.
A Lei Rouanet foi um marco na expansão dos investimentos públicos e privados na área. Desidratada pela falta de empenho da Secretaria Especial da Cultura em promover investimento, sofre da lentidão administrativa para aprovar projetos, uma vez que também a carência de domínio da legislação e da burocracia para viabilizar as propostas.
Mas, há novidade. No dia 9 de setembro, a edição do Diário Oficial da União publica a decisão da Secretaria Especial da Cultura, assinada no âmbito do Ministério do Turismo, em destinar recursos para vários projetos chancelados pela Comissão do Fundo Nacional de Cultura. Entre os beneficiários, há a organização Casinha Games (Cultura Digital), contemplada com a verba de R$ 4,6 milhões. Enquanto na mesma publicação, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) foi contemplado com apenas R$ 481 mil. Isso mesmo, quatrocentos e oitenta e um mil reais. Vale lembrar que em 2020, o Fundo Nacional de Cultura somou R$ 4,7 milhões para todos os projetos. Agora, de uma penada, um valor aproximado é destinado à uma organização inexpressiva e desconhecida.
Entre as informações colhidas numa breve pesquisa, a Casinha Games aparece como contemplada por influência do 04, o Jair Renan Bolsonaro, que já moveu o pai para ajudar a expansão dos jogos eletrônicos, como a redução dos tributos na importação de equipamentos.
O clichê
A política é toda ela rica em significados. A retórica do poder governamental e eleitoral centra-se em criação de sentidos, ressignificação de ideias e palavras, argumentos que são configurados como propaganda recheada de clichês, estereótipos. Evidência da modelagem discursiva é o uso desbragado de três palavras: política, democracia e povo. Mastigam esses termos como a saliva que potencializa perdigotos lançados ao nada.
O sujeito se elege com uma retórica de promessas. Assume o mandato e logo busca se defender quando enfrenta adversários ou críticas: “não sou político; sou gestor.” Ou, então: “minha decisão é técnica, não política.” A aberração da frase é proporcional à crença daqueles que reproduzem o clichê para sustentar o insustentável.
João Dória, candidato do PSDB ao governo do Estado, em agosto de 2017:
— Sou preparado para administrar a maior cidade do país, R$ 54 bilhões de orçamento, o terceiro maior orçamento do país, só perde para o orçamento da União e para o do estado de São Paulo. Quem administra a maior cidade da América Latina, a terceira maior capital do mundo, a sétima maior cidade do Planeta, com 12 milhões de habitantes, se sente preparado para ser gestor em qualquer circunstância.
Um pouco antes, para ocupar o espaço da campanha eleitoral, Dória foi mais taxativo: “Eu não sou político, não.” Em novembro de 2018, se elege governador numa campanha cujo anzol fisgou o bolsonarismo como companhia de viagem. Era o “bolsodória”.
O desprezo pela condição de político refletia e reflete a descrença e o desencanto da população em relação aos mandatários eleitos. O cidadão diz: “detesto política. Políticos são todos corruptos.” A percepção popular tem sentido, mas esconde a cultura da corrupção impregnada nas relações entre o mundo político e o do dia a dia da cidadania.
Jacques Rancière, em Ódio à Democracia (Boitempo, 2014, p. 68), observa a fragilidade ou a farsa em torno do termo democracia aplicado por tantos governantes na defesa de ações e projetos autocratas ou falsamente inspirados em demandas públicas:
- A “sociedade democrática” é apenas uma pintura fantasiosa, destinada a sustentar tal ou tal princípio do bom governo. As sociedades, tanto no presente quanto no passado, são organizadas pelo jogo das oligarquias. E não existe governo democrático propriamente dito.
E provoca com um soco no nariz: “Os governos se exercem sempre da minoria sobre a maioria.” A constatação resume e descreve como a anatomia do poder político está centrada na disputa e no controle de grupos especializados na disputa e na combinação de uma retórica vazia combinada com ações recheadas de interesses pragmáticos.
A onda atinge os diversos níveis de governo. Vereadores dizem o mesmo: “não sou político”. E se elegem conforme uma retórica avessa ao mandato e ao espírito eleitoral. É insidiosa picaretagem discursiva que encontra em parte do eleitorado eco pela percepção desabonadora sobre a relação com os governantes.
Sem “górpi”
E o 7 de setembro foi um palco, anunciado, para o boquirroto. Enfraquecido pela incompetência política de um desgoverno, fulanizou as decisões do Supremo Tribunal Federal ao identificar no ministro Alexandre de Moraes o inimigo do bolsonarismo. A estratégia é típica dos autocratas, dos ditadores. Escolha e aponte o inimigo para a turba poder salivar. É Moraes, porém, quem preside os inquéritos sobre as fake news que envolvem o vereador Carlos Bolsonaro e o tal gabinete do ódio. Assim, ao fulanizar, constrói um inimigo pessoal, um rosto para o linchamento virtual e para estimular os psicopatas que já ameaçaram o ministro e a família. Alexandre de Moraes é relator de quatro inquéritos que envolvem Jair Messias Bolsonaro e apoiadores. A rusga pessoal é um meio de desqualificar os processos jurídicos.
Tal conduta evidencia o quanto Bolsonaro submete a política ao amesquinhamento pessoal. Pensa pequeno; todo embate é uma briga de desafetos, nada mais. E isso afasta o debate, a razão jurídica e o argumento sobre as decisões do ministro Alexandre de Moraes, um constitucionalista por formação. A técnica da proposta dissimuladora funciona para a bolha bolsomíniom. Basta distrair com as falsidades e a tática da fulanização que dissimulam os graves problemas da incompetência administrativa do atual governante.
Enquanto isso, a máquina administrativa, no tranco, mantém os serviços públicos no limite do que é possível. O presidente não preside, a economia é desidratada, os arroubos são cada vez mais tonitruantes e um segmento do eleitorado sustenta um pilar de governo com evidente rachadura.
Num tom martirizante, no palanque da Avenida Paulista, Bolsonaro afirmou, novamente, que só morto deixará a Presidência. A verbalização agressiva faz lembrar Getúlio, apenas pela palavra morte.
Mas há a questão militar. Os generais e oficiais das Forças Armadas, da reserva e da ativa, amparam as narrativas cotidianas da ameaça e do terror pronunciadas por Bolsonaro. Em silêncio tático, vazam comentários em favor da democracia e contra a possibilidade de um golpe, pois o modelo tradicional do rompimento com o regime constitucional ficou para o passado.
Fruto de uma incompleta formação militar, Bolsonaro personifica o sentimento de rejeição à política pelo senso comum. Exatamente por ser um boquirroto sem medir as consequências, sua fala se tornou o totem de parcela do eleitorado impermeável ao debate político conforme a razão, ou conforme o estômago como diria Ulysses Guimarães. Bolsonaro e adeptos fazem política com o fígado, com a bílis, numa matriz de expressão reativa, emocional, envenenada pelo boato, pela especulação, pelo insulto e pelo desconhecimento de como se dá a conquista e a preservação do poder partidário e governamental.
País arruinado
Os anos pós-Bolsonaro serão de ruína. Caso se eleja, Lula será bombardeado pelo conservadorismo da extrema direita e terá de enfrentar uma máquina administrativa dilapidada. Mesmo se souber estruturar as alianças, a fome do Centrão permanecerá. Qualquer candidato que suceda ao bolsonarismo enfrentará a terra arrasada.
Marcel J. Cheida, jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas. Diretor da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abejor).
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