Monólogos Ácidos
- URRO
- 4 de nov. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 23 de jun. de 2022
De traição em traição
Ou como as relações entre o eleitor e o eleito sempre estão por um fio
Por Marcel Cheida

- O eleitor é um traidor.
A afirmação dita por um velho político me acompanha até os dias de hoje. Durante o período em que cobria Prefeitura e Câmara Municipal, para o Correio Popular, a frase me soou espantosa. O Brasil seguia conturbado pelo movimento em favor das eleições diretas e o eleitorado adquiria outro valor, outro status para o País.
A frase ecoa quando acompanho as variáveis eleitorais, os resultados das pesquisas de opinião. Hoje, entendo o espírito da afirmação. Aquele político estava certo, apesar de empregar um termo negativo moralmente, a traição, ideia que esconde, na política, outras tantas artimanhas.
As relações políticas e eleitorais não são simples, nem simplórias. São vergastadas na troca conflituosa entre o poder e o eleitor. Entre os governos e o cidadão.
Entendi que o eleitor tem mais razão. E muito mais do que o candidato quando este lança a culpa pela derrota a quem acusa de traidor. Àquele no qual confiava o discurso propagandístico por dias melhores. As relações políticas e eleitorais não são simples, nem simplórias. São vergastadas na troca conflituosa entre o poder e o eleitor. Entre os governos e o cidadão.
A afirmação na memória acompanha os últimos tempos conturbados, e a variação dos votos dados a Lula, Dilma e a Bolsonaro desde 2003. Destaco a última pesquisa de opinião Ibope, cujo resultado expõe uma aprovação de 40% dos entrevistados em favor do (des) governo Bolsonaro. Segundo o Ibope, foram ouvidas 2.000 pessoas em 127 municípios, entre os dias 17 e 20 de setembro. Esses números, pontuais, contudo, não revelam o processo histórico, que pode ser mais bem compreendido com a variação dos votos ao longo das eleições nesses últimos 18 anos. A tabela ajuda a expor a dinâmica que condiciona resultados e aponta indícios sobre como se comporta o eleitor.

Fonte: TSE.
Em relação aos eleitores, houve um aumento de 31.931.396 cidadãos com direito ao voto, entre 2002 e 2018. Ou seja, uma adição em torno de 36% no número de eleitores nesses 16 anos. Porém, a diferença nominal entre os votos obtidos por Lula, em 2002, e Bolsonaro, em 2018, varia em cerca de cinco milhões. Ou seja, Bolsonaro obteve cerca de 10% a mais de votos em relação a Lula 16 anos depois. E a diferença com a votação de Dilma em 2014 é de apenas 3,2 milhões de votos.
Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, divulgados agora em agosto, estão aptos a votar nas eleições municipais deste ano 147.878.026 eleitores, dos quais 70 milhões são homens e 77 milhões mulheres.
Os dados na tabela ajudam a pensar naquilo que disse o velho político. Pois, houve seis milhões de eleitores que deixaram de votar em Lula de 2002 a 2006. Mas, de 2006 a 2010, pouco mais de nove milhões de eleitores fizeram a diferença entre Lula e Dilma, ou seja, na mobilidade do voto há um porcentual que adota a flexibilidade, vota conforme a onda ou a tendência.
Mesmo considerando o aumento de eleitores, de 115 milhões para 147 milhões, ou seja, um porcentual de 27% a mais no número absoluto, a votação dada a Lula em 2002 comparada com a de Bolsonaro em 2018 representa cerca de cinco milhões de votos de diferença. Algo em torno de 9% a mais, considerando 2002 para 2018, ou seja, Bolsonaro conseguiu apenas 9% a mais de votos em relação a Lula, mesmo com um aumento de 36% de eleitores nesses 16 anos.
Esses dados indicam que há um segmento de eleitores que votam conforme a direção do vento, ou da biruta.
Numa outra perspectiva, os votos dados a Lula em 2002 (52,7 milhões) representou 45,8% do número de eleitores aptos a votar. Enquanto os votos dados a Bolsonaro em 2018 (57,7 milhões) representou 39,2% em relação aos eleitores aptos a votar.
Esses dados indicam que há um segmento de eleitores que votam conforme a direção do vento, ou da biruta. São pragmáticos. Na tabela acima, a última coluna à direita indica a variação porcentual de votos entre o vitorioso e o derrotado no segundo turno. Lula registra, em 2002, uma diferença superior em 36,7% em relação à Serra, o candidato derrotado do PSDB. A eleição de 2014 registra a menor diferença, nesses anos, entre a vitoriosa Dilma Roussef e o derrotado Aécio Neves, em apenas 6,3%. Ou seja, pode-se considerar que, nas eleições presidenciais desde 2002, a variação e a mudança de opinião de parte dos votantes estão presentes nessa faixa de eleitores. São pragmáticos, escolhem o candidato conforme os desejos, o estado emocional, o contexto em que se encontram ou como veem o cenário político naquele momento.
“O eleitor não é bobo. Ele sabe que o presidente, o governador e o prefeito têm – cada qual no seu espaço de atuação - o poder de resolver, ou pelo menos de combater, alguns problemas. O próprio processo eleitoral é esclarecedor quanto a isso.”
As eleições municipais apresentam cenários similares, apesar de o eleitor estar mais próximo dos candidatos. Ainda mais agora com as redes sociais, que passam a impressão de grande proximidade, até intimidade entre ambos.
O cientista político Alberto Carlos Almeida conduziu uma pesquisa sobre “A cabeça do eleitor – Estratégia de campanha, pesquisa e vitória eleitora”, obra publicada pela Editora Record, em 2008, por meio da qual buscou dados para desenhar quem é o eleitor, ou para o velho político, o traidor. “O eleitor não é bobo. Ele sabe que o presidente, o governador e o prefeito têm – cada qual no seu espaço de atuação - o poder de resolver, ou pelo menos de combater, alguns problemas. O próprio processo eleitoral é esclarecedor quanto a isso.” A afirmação, na página 67, destaca a relevância das eleições, momento no qual o eleitor, do menos ao mais escolarizado, se envolve, de um modo ou outro, com o debate sobre os rumos da cidade ou do estado.
A herança do modelo secular entre a senzala e a casa grande molda, ainda, a percepção média do eleitor em relação à autoridade.
O poder político, expressão mais acertada do que “os políticos”, se define no Brasil pela cultura da autoridade revestida de privilégios, numa clara distinção com o povo. A herança do modelo secular entre a senzala e a casa grande molda, ainda, a percepção média do eleitor em relação à autoridade. É claro que há eleitores, os vários segmentos socioeconômicos, com os atributos culturais próprios, que se encontram separados por fronteiras diversas, entre elas as regionais. Alberto Carlos de Almeida, na mesma pesquisa, destaca os abismos sociais, culturais e econômicos, além dos regionais, que perfilam segmentos distintos de eleitores. Não há como colocá-los num mesmo cenário para encontrar identidades absolutas. Cidades de médio e grande porte apresentam, com mais evidência, tais diferenças que devem ser levadas em conta nos processos eleitorais.
Ao depositar na “pessoa” o voto, o eleitor abre a porta do arbítrio, pois o eleito se sente descompromissado com projetos ou programas, ou seja, com o contrato eleitoral.
Ao votar, parte do eleitorado aposta na esperança de que seu candidato agirá para resolver demandas diversas. Mas, o sentimento messiânico predomina nessa relação. O brasileiro crê, conforme o senso comum, no indivíduo, o político, que terá o poder de decidir. E assim afasta qualquer possibilidade de discutir programas ou projetos, que seriam o norte da ação da autoridade política eleita. Ao depositar na “pessoa” o voto, o eleitor abre a porta do arbítrio, pois o eleito se sente descompromissado com projetos ou programas, ou seja, com o contrato eleitoral.
Como o arbítrio é um recurso oposto à lealdade, o político eleito como autoridade - e não como servidor ou representante de eleitores a quem deve satisfação - age conforme os próprios desejos. A parcela que está comprometida com programas e princípios partidários discursa e age para minorias. Desse modo, prevalece a relação quase espúria entre o eleitor, que deposita o voto no messias, e o eleito, que modula o discurso e a decisão conforme o desejo do momento. Assim Bolsonaro tem agido, como um camaleão, nos últimos meses. Do discurso do “basta”, “chega”, passou à conversa malemolente com o centrão e as lideranças mais à direita no Congresso Nacional e com o STF, apesar de alisar poucos ministros, como Gilmar Mendes e Tóffoli. E age assim conforme as relações e as práticas ilícitas dos filhos e do próprio são evidenciadas pelos jornais, pelo MPF e pela PF.
Tais informações chegam, hoje, rápida e exponencialmente a inúmeros segmentos que se informam pelas redes. A “traição” do eleitor é inerente à “traição” dos eleitos, os quais quando assumem o mandato passam a se preocupar com as benesses e privilégios. Em alguns momentos da posse de vereadores ou deputados, logo em seguida há uma tradicional e inescapável reunião com as mesas diretoras de cada Casa legislativa, Câmara Municipal ou Assembleia. Em pauta, quais são os privilégios e vantagens a serem entregues a vereadores e deputados.
Começa aí a traição.
Marcel J. Cheida, jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas. Diretor da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abejor).
Ilustração: Retrato de Niccolò Machiavelli, Santi di Tito
Comments