Monólogos ácidos
- URRO
- 18 de set. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
E o diabo disse sim
Por Marcel Cheida

A cenografia inicial de O Diabo Disse Não, de Ernst Lubitsch, filme oscarizado produzido em 1943, mistura um salão templário com a sala de espera de hospital. O diabo, elegante e formalmente interpretado por Laird Cregar, recebe a vítima, o polido Don Ameche, para quem será dito o advérbio de negação ao desfecho do roteiro.
O polido Lubitsch, imigrante de origem alemã, de família judia, dirigiu um filme elegante, que se mistura a uma ingenuidade em tom de comédia de costumes. Laird Cregar molda um Lúcifer típico da elite norte-americana e da classe média alta inspirada no smoking costurado por alfaiates precisos no corte.
O personagem diabólico é o oposto do que a tradição figurativa, icônica, desde a Renascença, desenhou sobre Lúcifer e suas variadas e horrendas facetas. Interessante é ver um diabo perfumado, saído do banho, cavanhaque aparado, cabelos rigorosamente umedecidos com alguma pasta de época.
Alan Parker conduz o roteiro sem qualquer artefato demoníaco para afirmar Satanás.
Daí um salto. Em 30 de julho deste ano, morreu Sir Alan Willian Parker. Cavalheiro britânico, diretor de obras referenciais do cinema. Como Coração Satânico (Angel Heart), Mississipi em Chamas (Mississipi Burning), Evita, The Wall. Em Coração Satânico (lançado em 1987), a construção do diabo, personagem interpretada por Robert De Niro, Louis Cyphre, num desempenho ardilosamente torturante, Alan Parker conduz o roteiro sem qualquer artefato demoníaco para afirmar Satanás. De Niro dá vida ao imortal Lúcifer, cujo intento é o de fazer-se revelar ao detetive Harold R. Angel (o quase sonâmbulo Mickey Rourke) pelas tripas cardíacas.
Mais tarde, Al Pacino (John Milton) põe no bolso o bobinho Keanu Reeves (Kevin Lomax), que interpreta o advogado caipira, sonso, cuja mãe (Alice Lomax, interpretada por Judith Ivey) transou com o Cramulhão em época da hormonal juventude, quando visitou a big city. Depois da cama, se converteu e ingressou no mundo dogmático, evangélico. Passou a odiar o diabo, ou melhor, John Milton, pai de Kevin. Advogado do Diabo (The Devil’s Advocate – 1998) foi dirigido por Taylor Hackford, que também deu vida cinematográfica a Ray Charles em 2004. Com instantes nos quais a faceta horrenda do diabo é exposta, o filme se sustenta na rotina de um casal, cujo marido, o advogado, tenta galgar degraus na carreira com o estímulo do insaciável tridente paterno. Kevin Lomax é um marido alienado em relação à esposa, a belíssima Charlize Theron, como Mary Ann. John Milton é personagem muito distante de Laird Cregar em O Diabo Disse Não, pois adora a suruba, bares e a riqueza tosca do consumo pervertido.
Apenas os pés manchados de negro alcatrão, possivelmente, contrastam a alva e brilhante entrada de Lúcifer para tentar colher a alma de Constantine.
Outro diabo carismático foi moldado pelo sueco Rolf Peter Ingvar Storm, ou Peter Stormare, em Lúcifer ou Lu para o íntimo Constantine, novamente o sorumbático exorcista Keanu Reeves. No desfecho do filme, Stormare paira lentamente numa controlada descida com o corpo articulado num tom de bailarino vestido num terno cujo tecido alvo vai às origens bíblicas da esplendorosa luz da manhã. Stormare elabora um dos diabos mais multifacetados do cinema, porque elegante, carismático, sarcástico e terrível. Apenas os pés manchados de negro alcatrão, possivelmente, contrastam a alva e brilhante entrada de Lúcifer para tentar colher a alma de Constantine. Aliás, a elegância une o diabo nesses quatro atores, dirigidos por diretores preocupadíssimos em relação à estética demoníaca. Pois, no Ocidente, o diabo adquiriu trejeitos e máscaras distantes e em oposição aos personagens semelhantes no mundo asiático. Lá, da Índia ao Japão, o mal se distancia demais do elegante personagem europeu, inspirador de atores embalados num smoking de corte norte-americano.
Lembre-se ainda de que o demoníaco Drácula é criado pela leitura sobre a cultura das lendas da Europa Oriental, vista com forte preconceito pelos Ocidentais. Drácula veste-se ou é vestido com certa suntuosidade cinematográfica, cujo elemento de resistência é a capa forrada num tecido de seda ou cetim em carmim ou branco.
Diabo, do latim dia bolos, ou “duas mortes”, designava a morte da alma e do corpo. O termo foi adotado como correspondente a Lúcifer, a luz decaída. O responsável foi o cartaginense Tertuliano (século II d. C,), que teria dito: “isso deve significar o diabo.”A palavra diabo é latina, reconfiguração tardia do hebraico Shatan, ou no coloquial Satã, a partir do Livro de Jó. No Concílio de Toledo, em 446 d. C., o termo diabo foi adotado formalmente pela Igreja Católica. Não sem antes o patriarca Atanásio tê-lo citado na clássica hagiografia de Santo Antão.
E aí retorno ao título dessas linhas: qual diabo seria um personagem interessante no boteco? No cinema, raros são os Satãs frequentadores de bares ou botecos. Se o gole para o santo indica essa presença no boteco, Lúcifer talvez entre para se acomodar no balcão a fim de encontrar quem queira ouvir as lamúrias contra Aquele que tanto inveja. Mesmo que ninguém o reconheça pela elegância que disfarça o enxofre. Ou como indica o ditado: a maior astúcia do diabo é fazer-nos acreditar que ele não existe. Mesmo quando é derrubado o gole para o santo, ritual etílico-botequeiro que ainda não inspirou nenhum filme nacional de porte.
Não sei, não, mas, mesmo com todas essas tentativas, o diabo brasileiro é uma combinação de Zé do Caixão com Bento Carneiro, um vampiro acovardado pela própria malemolência.
Há outros tantos diabos em tantos outros filmes. No cinema brasileiro, Zé do Caixão foi a maior poesia sobre criativos pesadelos em sequências de falas grandiloquentes em cenários nos quais o personagem Josefel Zanatas, um Satanás quase invertido, queria o filho perfeito. No Auto da Compadecida, de Suassuna, o diabo é interpretado por um esforçado Luis Melo aparentemente desconfortável com uma figura menor no filme. O aprendizado sobre a interpretação de personagens mais humanos na carreira pouco o ajudou na elaboração dos trejeitos diabólicos nas cenas finais do diálogo travado com Nossa Senhora, a meticulosa Fernanda Montenegro.
Não sei, não, mas, mesmo com todas essas tentativas, o diabo brasileiro é uma combinação de Zé do Caixão com Bento Carneiro, um vampiro acovardado pela própria malemolência. Ah, Zé do Caixão frequentava os botecos da boca do lixo em São Paulo com o nome de batismo, José Mojica Marins, um paulistano nada diabólico.
Marcel J. Cheida, jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas. Diretor da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abejor).
Ilustração: Retrato de Niccolò Machiavelli, Santi di Tito
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