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Monólogos Ácidos

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 15 de mar. de 2023
  • 6 min de leitura

Tudo joia? Ou a sede de um poder desgovernado

Por Marcel Cheida


Um deles vomita regras e condenações, enquanto os outros, até apalermados, olham os aparelhos celulares na tentativa de pescar alguma informação ou notícia que possa alimentar a tal “opinião”. Fazem aquela manjada mesa redonda de boleiros de emissoras de rádio, agora, na tela da tv fechada.


O suprassumo do antijornalismo: as emissoras de televisão, a cabo ou aberta, sem o status de uma Globo ou de uma Bandeirantes, sob alegação de corte de despesas ou falta de receita, convidam ou contratam aquele conhecido que tropeçou na esquina para comentar o cenário político nacional, ou regional, se for o caso.


A degradação do processo político nos últimos anos carregou o jornalismo junto. Este não soube enfrentar a complexidade de um período desenhado pela tal “polaridade” que ajudou a estabelecer uma abordagem equivalente entre seres ou partes distantes na formação doutrinária e na história da carreira política.


O nivelamento de certos termos e expressões evidenciou um tipo de pacto não assinado entre jornalistas e redações, como, por exemplo, ao igualar e ao equivaler entes ou personalidades políticas distintas e singulares.


Houve um esforço, sob o manto de uma tal imparcialidade, nada mais que retórica, de igualar o desgoverno Bolsonaro com os governos de Dilma e, principalmente, de Lula. Mesmo com evidências de dados, números, estatísticas e fatos que os distinguiam e os separavam, eram comuns as expressões que formatavam os erros ou crimes de Bolsonaro com os casos de corrupção detectados ao longo dos governos Lula e Dilma.

E os jornalistas rapidamente se deram conta, ou nem tanto, de que o desgoverno Bolsonaro contava com a adesão de metade dos eleitores com votos válidos. Esse universo aderiu ou revelou o modelo de mentalidade dual, dita polarizada em dois campos partidários impermeáveis um ao outro.


O extremismo evidenciava e evidencia um bolsonarismo cuja expressão sobre as coisas da política se resumiam ao bem contra o mal, o amigo e o inimigo, o extrema direita contra o comunista, o indivíduo hétero contra a comunidade LGBTQIA+, o agronegócio contra a indústria, a bancada da bala contra os direitos humanos, as correntes católicas e protestantes progressistas contra os neopentecostais.


Enfim, a faca da propaganda, da guerra híbrida aplicada a tempos de paz, estabeleceu o discurso do poder, envernizado por uma camada de bobagens e agressões gratuitas a todos que não rezassem os mantras ditados pelas fake news preparadas e lapidadas no gabinete do ódio.


A falsidade sobre os fatos no mundo, a distorção, a dissonância cognitiva e até um certo imaginário caído por insight esquizoide promoveram a embalagem retórica para proteger Bolsonaro e os generais das inconvenientes verdades factuais. A disputa ideológica, partidária, era mais importante do que os fatos políticos, sociais e econômicos.


Sem desprezar os fatos culturais, pois a Lei Rouanet foi empacotada como entidade do mal dos segmentos culturais que levaram o Brasil a ter sua música, literatura, cinema, teatro, artes plásticas, entre outros gêneros, reconhecidos em todo mundo. Fizeram porque fizeram Fernando e Sorocaba equivalerem a um Tom Jobim e Vinícius de Morais.


As redações foram contaminadas tais quais aqueles vírus zumbis disseminados em séries e filmes de várias plataformas digitais que exploram o sistema streaming de exibição. A metáfora encarnada e podre na figura do zumbi estava nas redações, na tela das emissoras abertas e a cabo.


Nos programas veiculados no youtube, com influencers cagando regras e se revoltando contra a lacração e a opressiva condenação dos excessos e das bobagens ditas em tom solene por rapazolas dotados de expressão digital para uma audiência carente de filtro crítico.


O bolsonarismo tem por natureza a ignorância, a reprodução acelerada de preconceitos e clichês (pela família, pela pátria e por Deus). Os patrões aderiram aos desgoverno, no tradicional pragmatismo que contamina e descaracteriza a notícia, a informação procedente, jornalística. As redações sucumbiram, tentaram recriar a tal imparcialidade parcial. Os fatos?, ora os fatos!


Nunca o intelectual inglês Samuel Johnson esteve tão atual: o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. A frase, de origem analógica e, hoje, viralizada nas redes, apontava aqueles burgueses que, ao defenderem interesses mesquinhos numa Inglaterra em período de transição do Estado monárquico e mercantil para a sociedade liberal e capitalista, alegavam o patriotismo como demonstração de sabujice e adoração messiânica ao poder, ao governante de plantão e ao rei.


Farsa. Fraude. O interesse que defendiam era contido, restrito e mesquinho. Não poderia se tornar público, sob o risco de ser desmoralizado. Assim, como sempre, os detentores do poder político agiram nas sombras, nas salas fechadas, para negociar interesses privados e torná-los, então, aparentemente públicos.


Ao defender a tal família, a pátria e Deus (acima de tudo), o bolsonarismo embalou-se de fraudulento discurso de ojeriza aos jornais e jornalistas, de modo que estes, perplexos, foram montar guarda em defesa da tal imparcialidade.


Elevaram esse valor, meramente abstrato, ao campo da edição técnica de atos e mentalidades diferentes para um discurso que igualava coisas e mundos diferentes. Jornalistas, pouco ou muito conhecidos, se diziam imparciais, identificados com o centro democrático (o que isso quer dizer, ainda não disseram) ou se autorrotulavam de liberais, defensores da liberdade de expressão.


Caíram, assim, na armadilha montada pelos generais e outros oficiais conselheiros e condutores do bolsonarismo. Aliás, o protagonismo militar nesse período, desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, merece pesquisa e estudos rigorosos para melhor entendermos uma etapa estranha, obscura e desviante dos esforços em consolidar o estado de direito democrático no País.


Ao alinhar o discurso e posturas contra o “sistema”, em especial o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, o bolsonarismo cumpriu parte do modelo chavista simpático a Jair Messias, como havia declarado em entrevista concedida e publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, em 1999.


Vale reler o que disse: “Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil (...) Acho ele ímpar. Pretendo ir à Venezuela e tentar conhecê-lo.” Mas, não termina aí, é claro. “Ele (Chaves) não é anticomunista e eu também não sou. Na verdade, não tem nada mais próximo do comunismo do que o meio militar”. A hipocrisia ocupava todos os vácuos mentais do sujeito.


O comunismo sempre citado por Bolsonaro nos últimos tempos, em especial durante a campanha eleitoral de 2018 e o mandato de quatro anos, nunca foi conceituado pela turba possessa nas redes sociais e o termo foi insistentemente difundido em lives comandadas pelo gabinete do ódio. Rotular qualquer adversário de comunista estimulou a memória do senso comum enraizada ao longo do tempo no Brasil.

Chaves aplicou um método de controle do “sistema” do Estado venezuelano, militar, se tornou o grande líder entre os pares, submeteu o Judiciário e controlou a imprensa, bem como os partidos políticos, sob a justificativa de combater os maléficos interesses econômicos norte-americanos sobre um território encharcado pelo petróleo.


Mas, as leituras feitas por Bolsonaro sempre foram rasas, toscas até. “Acho que ele [Chávez] vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força. Só espero que a oposição não descambe para a guerrilha, como fez aqui.” Se Chaves tinha os EUA e os Bush como demônios a serem combatidos, aqui Bolsonaro ressuscitou o carcomido ataque aos comunistas imaginários, personagens da Guerra Fria.


À medida que inflava politicamente e eleitoralmente, Bolsonaro passou, metodicamente, a repetir os clichês recuperados das décadas de 1960 e 1970, que também foram resgatados do período posterior à Intentona Comunista, década de 1930. Seus principais conselheiros foram os generais herdeiros dos tiranetes do AI5. Heleno, Braga Netto, Luiz Ramos, Villas Boas, entre outros, são saudosistas e depositários dos desvalores do regime militar de 64 e 68.


Controlar as instituições e os ataques constantes aos jornais e jornalistas sinalizavam o cimento da adesão popular de modo a pavimentar o caminho para o segundo mandato e, então, o fortalecimento do regime sob a tutela de Jair Messias, que contava com um candidato a vice-presidente para possível sucessão, o Braga Netto.


Durante quatro anos, o discurso predominante foi o anticomunismo, o combate à diversidade, a recusa em reconhecer um princípio basilar da Constituição Federal, a pluralidade, valor político e social que abriga os direitos às inúmeras minorias, muitas das quais excluídas do Estado de Direito. O artigo 37 da CF foi insistentemente violado nas ações do desgoverno.


A impessoalidade e a publicidade viraram alvos das escarradas presidenciais. O orçamento secreto é testemunha pública desse algazarra administrativa e legislativa. A engenharia adotada pelo desgoverno aplicou com eficiência o discurso diversionista focado em lançar fake news ou acusações repetidamente sem procedências como a que afirmava a fraude nas urnas eletrônicas.


Assim, aventurou-se por quatro anos tensionando as relações políticas, como aconteceu naquele 7 de setembro de 2021, quando tachou o ministro Alexandre de Moraes de “canalha” e prometeu negar-se a cumprir qualquer decisão judicial dele originada.


Bolsonaro deixa uma herança de um tempo no qual o autoritarismo, o projeto de tirano, manchou o quadro de uma democracia sempre irrealizada desde a República proclamada exatamente pelos militares com mentoria dos positivistas.


Hoje, o segmento dito conservador, à direita e levado pela extrema direita, não tem, de fato, projeto para o País, a não ser a defesa de interesses muito localizados, como os do segmento do agro, a indústria armamentista e a indústria de uma religiosidade do toma lá, dá cá. Agora, o desafio do governo eleito é reconstruir o Brasil tomado pelo tsunami de um pretenso conservadorismo mais raivoso do que valoroso.


Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.


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