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Monólogos Ácidos

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 30 de ago. de 2022
  • 6 min de leitura

Atualizado: 4 de dez. de 2022

O feminino e o poder político

Por Marcel Cheida



A política sempre foi, costumeiramente, o predomínio masculino. A relação do poder com o uso da força, da violência, tem no homem o sujeito central e que, historicamente, moldou o conceito de Estado e de governo. A presença feminina chega a ser isolada, até rara, em boa parte das nações ocidentais, aquelas herdeiras da tradição judaico-cristã, de berço greco-romano. Não tomo aqui as sociedades matriarcais, indígenas, ou mesmo distantes e isoladas do mundo europeu.


Um dos relatos originários da presença da mulher no ambiente do poder encontra-se na mitologia grega, como Atenas, que dá nome à capital grega, chamada de Minerva entre os romanos. Ela foi descrita como a deusa da sabedoria, que na tradição romana também personalizava as artes e o comércio.


Atenas foi convocada por Apolo para, pela primeira vez no mundo dos deuses, liderar o julgamento de Orestes, por ter assassinado a mãe, Clitemnestra, em vingança por ela ter assassinado o marido, Agamenon. Isso porque, ele, comandante do exército grego, sacrificou uma das filhas para obter as bênçãos dos deuses e assim vencer os troianos.


Orestes é poupado, por Apolo, de ser condenado e executado pelo assassinato da mãe. Até então, a justiça privada recomendava o olho por olho, dente por dente, a lex talionis, ou seja, a retaliação ou a punição no grau similar ao ato criminoso, sem qualquer processo ou direito à defesa.


O acusado seria o primeiro personagem a ser julgado por 12 cidadãos que se dividiram num empate entre a condenação à morte ou a preservação da vida. Então, Atenas/Minerva é chamada a decidir, ela desempata a votação e poupa Orestes.


Por isso a expressão voto de Minerva, herdada da tradição do direito romano, que configurou o mundo jurídico no Ocidente. Esse mito funda o valor da sabedoria na decisão de uma deusa, uma mulher. Interessante que na mitologia greco-romana, nas devidas características culturais, são muitas as deusas, detentoras de poderes sobre o destino de cada um dos mortais.


Mais tarde, no mundo contemporâneo, é no período da Revolução Francesa que um debate vai levar uma pensadora e crítica a ser referência sobre a participação da mulher num sistema masculino. Olympe de Gouges, batizada Marie Gouze, nasceu no sul da França em 1755.


Foi executada na guilhotina 38 anos depois, por ter contestado o domínio masculino e a terminologia usada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, documento que norteou o princípio político de igualdade entre os homens. Olympe escreve e publica, três anos depois, em setembro de 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.


O domínio masculino expresso nos textos de época encontrou em Olympe uma barreira que questiona e reivindica o direito de igualdade tanto para os homens como para as mulheres. Pois, estas, não estavam contempladas na ideia de igualdade entre os homens. Tanto que a escravidão, popular à época do colonialismo, serviu de referência para ela criticar a submissão da mulher ao universo masculino.


Na Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadão, defendia o direito de as mulheres receberem educação, pois eram aptas tanto quanto os homens para isso. Pois, o cidadão, masculino, era o sujeito letrado. Assim, a mulher deveria ter o direito ao trabalho e a pagar impostos, equalizando a relação entre ambos.


Como enfrentou severas críticas e um exército de insultos, Olympe buscou numa mulher poderosa, Maria Antonieta, rainha consorte da França, apoio às suas ideias. E enviou um exemplar o livro para ela. Isso foi visto como traição aos ideais da Revolução Francesa. E por isso foi acusada, condenada e executada.


Um dos filósofos dos mais presentes nos debates sobre a educação para a cidadania foi Jean Jacques Rousseau. Na obra Èmile, ou da Educação, de 1762, Rousseau afirmava que a mulher era desprovida da mesma capacidade intelectual do homem. Por isso, deveria ser destinada à instrução menores, sobre a conduta moral, etiqueta, entre outros. Tal obra foi ao encontro da sociedade masculina, como expressão dos costumes impregnados em inúmeros pensadores modernos.


Outras tantas mulheres se projetaram desde então, na busca de expandir o espaço para a presença feminina no mundo político, cultural e até o religioso, este o mais empedrado pela masculinidade ao longo dos tempos.


E no Brasil


No Brasil, a presença da mulher nas esferas do poder é algo mais recente. A eleição da belorizontina Dilma Vana Rousseff em 2010 e, depois, a reeleição para o período de 2015 a 2018 constituíram um marco na história da política brasileira. Com exceção da princesa Isabel, que ocupou o poder monárquico na ausência de D. Pedro II, Dilma inaugurou uma nova etapa com a vitória de uma mulher para a Presidência da República.


Mas, a mulher brasileira soube se informar para construir um outro caminho que não o masculino na disputa e na ocupação do poder. E uma das pioneiras a traçar a linha para a participação feminina foi a professora Nísia Floresta Brasileira Augusta.


Um dos documentos que registra a manifestação em favor da emancipação feminina é a tradução para o português de uma obra inglesa, de uma das pioneiras do feminismo, Mary Woollstonecraft, A Reivindicação dos Direitos da Mulher, publicada em 1792. A tarefa foi iniciativa da potiguar Dionísia Gonçalves Pinto, que se autodenominou de Nísia Floresta Brasileira Augusta, ao publicar a obra, numa tradução livre, em Recife, em 1832.


Nesse texto, Mary Woollstonecraft monta um libelo contra a dominação masculina, opondo-se à submissão e ao menosprezo que a sociedade dedicava a elas. E reivindicava a educação universal, inclusiva às mulheres, como meio de superar a obediência humilhante ao homem. Nísia Floresta dedicou a vida a publicar textos e à educação, de modo a espalhar as ideias em torno do valor das mulheres, numa sociedade escravagista, masculina e machista.


Mary Woollstonecraft foi a mãe de Mary (Woolstonecraft) Shelley, autora de uma das obras geniais do romance de ficção científica, Frankenstein, o Prometeu Moderno, escrita e publicada entre 1816 e 1817. Mary Shelley, que se casou com o poeta Percy Shelley, tinha apenas 19 anos quando publicou Frankenstein, sem o apoio do marido. A primeira edição de Frankenstein não tinha o nome de Mary Shelley como autora, exatamente pelo domínio masculino na literatura europeia.


Nas idas e vindas da história, desde a Constituição de 1824, a primeira vez que o voto universal contemplava a mulher decorre da reorganização do sistema eleitoral decretado por Getúlio Vargas em 1932. A medida criou a Justiça Eleitoral, consolidou o segredo do voto e rompeu com a visão masculina das eleições herança da República Velha.


A primeira mulher eleita no Brasil, porém, em setembro de 1928, foi a também potiguar Alzira Soriano, com apenas 32 anos, prefeita do município de Lajes. Ocorria que a Constituição Republicana de 1891, cujas emendas em favor do voto feminino foram derrotadas, tratava do voto do cidadão. O direito ao voto era lido na perspectiva do mundo masculino, excludente da participação da mulher.


Alzira foi eleita em razão de uma lei inédita promulgada pelo então governador do Rio Grande do Norte, um ano antes, José Augusto Bezerra de Medeiros. A Lei Estadual 660, de 25 de outubro de 1927, disponível no Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE-RN), tinha a seguinte redação: “No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”. Hoje, quem governa o Rio Grande do Norte é uma mulher, Fátima Bezerra, pelo PT.


Hoje, no Nordeste, mais dois Estados são governados por mulheres: Ceará, com Maria Izolda Cela de Arruda Coelho, PDT, e Piauí, com Maria Regina Sousa, pelo PT. Ambas foram eleitas como vice-governadoras e assumiram o cargo em razão do afastamento dos titulares para a disputa das eleições neste ano.


Em 1933, no pleito para a formação dos deputados na Assembleia Nacional Constituinte, foi eleita, pela primeira vez para um cargo federal, a paulista Carlota Pereira de Queiroz, que havia se notabilizado por organizar cerca de 700 mulheres num amplo movimento de apoio e assistência aos feridos e vítimas dos embates do Movimento Constitucionalista de 1932, quando São Paulo foi sufocado pelas forças federais.


A Constituição de 1934 instituiu, então, o voto universal. Porém, as eleições previstas para 1937 foram anuladas pelo golpe do Estado Novo em novembro daquele ano. É na Constituição de 1946 que as mulheres voltaram à condição de eleitoras. Com restrições. Por exemplo, os analfabetos foram excluídos. E o Brasil registrava cerca de 48% de homens e mulheres, adultos, que não sabiam ler e escrever.


Ainda na tábua da história, em 1976 uma mulher toma posse numa cadeira no Senado da República, pela primeira vez desde a fundação da República. A amazonense Eunice Mafalda Berger Michiles, ocupa o mandato em razão do falecimento do senador João Bosco Ramos de Lima, advogado e jornalista, eleito pela Arena no Amazonas, de quem era suplente.


O curioso é que a professora Eunice Michilles foi a segunda mulher a ocupar uma cadeira no Senado. A primeira foi a Princesa Isabel, durante o Império, pelo direito dinástico.


No Brasil, as mulheres rompem as muralhas do mundo político masculino pedra a pedra, passo a passo, brecha a brecha. Hoje, parte dessa conquista inclui, fundamentalmente, a primeira mulher indígena eleita em 2018, Joênia Wapichana, pelo estado de Roraima. Que essas muralhas sejam derrubadas de vez.

Nota

Para poder redigir esse artigo, recorri às seguintes publicações, entre outras tantas ao longo do tempo:

MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. Edição do Kindle. – 2ª ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019.

NICOLAU, Jairo. História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004.


Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.

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